Cartel dos seguros: MP pede absolvição da Zurique e redução da coima da Lusitânia
O Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão (TCRS), em Santarém, começou hoje a ouvir as alegações finais
O Ministério Público pediu esta segunda-feira a absolvição da Zurique e a redução da coima da Lusitânia de 20,5 para 2,5 milhões de euros no processo em que Tranquilidade e Fidelidade assumiram práticas anticoncorrenciais, beneficiando do regime de clemência.
O Tribunal da Concorrência, Regulação e Supervisão (TCRS), em Santarém, começou esta segunda-feira a ouvir as alegações finais no julgamento dos recursos apresentados pela Lusitânia, dois directores e um administrador e pela Zurich Insurance (coima de 21,5 milhões de euros) e um dos seus directores, num processo em que, ao abrigo do instrumento de clemência, a Seguradoras Unidas (ex-Tranquilidade) beneficiou de dispensa total de coima e a Fidelidade e a Multicare de redução, pagando ambas, no total, 12 milhões de euros.
O procurador do Ministério Público (MP) apontou "iniquidades" na decisão da Autoridade da Concorrência (AdC), nomeadamente quanto ao tratamento dado aos administradores das companhias que aderiram ao mecanismo de clemência, ao arquivar, quanto a estes, o processo, e condenando os das recorrentes.
Paulo Vieira pediu a absolvição dos quatro responsáveis das duas seguradoras recorrentes visados no processo, salientando nunca antes ter visto "tratamento tão diametralmente oposto entre arguidos".
Este entendimento acompanha o teor do despacho do TCRS que, em Dezembro, propôs a retirada da acusação contra responsáveis da Lusitânia e da Zurich, como aconteceu com os das companhias que beneficiaram de clemência, ao qual a AdC se opôs.
Nesse despacho, a juíza Mariana Gomes Machado referia o tratamento diferenciado dado pela AdC aos administradores da Seguradoras Unidas, Fidelidade e Multicare, os quais viram os seus processos serem arquivados, podendo continuar a exercer funções no sector.
Quanto ao envolvimento da Zurique, o procurador frisou que o facto de a prova ser insuficiente, levando-o a pedir a absolvição ao abrigo do princípio "in dubio pro reu", não impede que pense que possa ter estado envolvida no acordo.
Em concreto, questionou por que razão o seu director comercial participava nos almoços a quatro, revelando "contactos de natureza pessoal e de certa proximidade" com os seus homólogos das outras envolvidas.
Paulo Vieira justificou o pedido de redução da coima aplicada pela AdC à Lusitânia pela "grande desproporção" em relação à que foi paga pela Fidelidade, tendo em conta os volumes de negócios e o valor do segmento de mercado afectado, em ambas, pela prática em causa no processo (a repartição de grandes clientes empresariais de alguns sub-ramos de seguro não vida, mediante a manipulação dos preços a constar das propostas que lhes eram apresentadas).
Admitindo que ao transaccionar com a AdC, a Fidelidade "tem de ter uma recompensa", o procurador notou que esta seguradora aderiu ao pedido de clemência "quando a prova já estava produzida", revelando "sentido de oportunidade", já que a sua "boa vontade não terá tido grande consequência processual".
Paulo Vieira recordou que o processo teve início com o pedido de clemência apresentado pela então Tranquilidade, quando um novo administrador detectou a prática e decidiu pôr-lhe fim e comunicá-la ao regulador, com a Fidelidade a aderir ao pedido de clemência no dia em que foram realizadas buscas nas suas instalações.
"Não deixa de ser curioso", declarou, concluindo que "as grandes empresas acabam por se safar e ficam as pequenas".
Nas suas alegações, a AdC defendeu os instrumentos de transacção e clemência, como "ferramentas centrais" em situações de cartel, um tipo de acordo que, salientou a mandatária do regulador Sara Assis Ferreira, "cada vez é mais sofisticado", colocando grande "desafio" para o regulador encontrar "prova bastante".
Sara Ferreira salientou que o regime de transacção dá celeridade aos processos, aumentando a prevenção deste tipo de práticas, tendo os recorrentes optado por não aderir a este mecanismo, não beneficiando, por isso, nomeadamente, do arquivamento quanto aos sujeitos individuais.
Para a mandatária da AdC, mesmo que o Tribunal tenha entendido censurar o modo como foi feito o arquivamento, não pode reflectir esse entendimento na decisão, tendo de se cingir a concluir se existe prova para condenar ou não.
Por outro lado, rebateu o argumento de que a Zurique se possa incluir no grupo das "pequenas", salientando que se a sua quota no mercado em causa no processo (ramo não vida, como sinistros e acidentes de trabalho) é pequena, esta companhia "é um gigante mundial".
"O argumento dos pequenos prejudicados tem de ser posto no devido contexto", declarou.
Para a AdC, não há dúvida de que existiu um acordo que envolveu as quatro seguradoras e que as duas companhias recorrentes tiveram "conduta ilícita", praticada com dolo, defendendo Sara Ferreira que "só coimas pesadas têm efeito útil".
A AdC condenou, em 2019, a Lusitânia e a Zurich, dois administradores e dois directores destas seguradoras a coimas superiores a 42 milhões de euros, valor ao qual se junta os 12 milhões de euros já pagos pela Fidelidade e Multicare, tendo a Seguradoras Unidas (ex-Tranquilidade) ficado dispensada do pagamento de coima.
Segundo a AdC, as empresas envolvidas no cartel combinavam entre si os valores que apresentavam a grandes clientes empresariais na contratação de seguros de acidentes de trabalho, saúde e automóvel, apresentando sempre valores mais altos, para que o cliente se mantivesse na seguradora já contratada.
A abertura da investigação ocorreu em Maio de 2017, na sequência de um requerimento de dispensa ou redução da coima (pedido de clemência) apresentado pela Seguradoras Unidas, à AdC, no que foi seguida pela Fidelidade -- Companhia de Seguros e pela Multicare -- Seguros de Saúde.