Imobiliário: os preços “exuberantes” vieram para ficar

Os preços da habitação em Portugal aumentaram mais de 6% entre 2014 e 2020. O estudo O Mercado Imobiliário em Portugal demonstra como o aquecimento do preço das casas se estendeu a todo o país.

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Lisboa, a par de Faro, registou as primeiras provas de “comportamento exuberante subsequentemente prolongado e generalizado” no mercado da habitação, a partir de meados de 2017 Miguel Manso

O problema não é novo, nem é uma originalidade portuguesa. Há muitos países na Europa em que o crescimento dos preços da habitação tornou o acesso a uma casa digna inalcançável para uma grande parte dos cidadãos. Foi em Novembro de 2021 que a Comissão Europeia alertou para sinais de potencial sobrevalorização dos preços das casas e sinalizou Portugal como um dos países da UE onde detectou maiores riscos de uma futura correcção abrupta no mercado imobiliário. Nessa mesma altura, já uma equipa de investigadores, coordenada por Paulo Rodrigues, respondia ao repto da Fundação Francisco Manuel dos Santos (FFMS) e procurou analisar, no estudo O Mercado Imobiliário em Portugal – preços, rendas, turismo e acessibilidade, as suas múltiplas dimensões. O estudo abrangeu as últimas décadas, e parou no início de 2020 – precisamente quando estalou a pandemia de covid-19.

Agora, refere ao PÚBLICO Paulo Rodrigues, investigador no Departamento de Estudos Económicos do Banco de Portugal, algumas componentes do estudo vão ser actualizadas – nomeadamente aquela que analisa o comportamento dos preços, e que pode ajudar a perceber como eles são determinados, e as razões que os leva a oscilar. “Poderíamos pensar que a pandemia traria uma quebra na procura, e que o choque brutal no PIB trouxesse um arrefecimento dos preços, mas tal não se verificou. Teremos de perceber porquê”, afirma o investigador.

Exuberância, dizem eles

Paulo Rodrigues, doutorado em Econometria na Universidade de Manchester, e professor na Universidade Nova de Lisboa, é mesmo um dos investigadores que assinam – a par com Rita F. Lourenço e René Huget – o capítulo do estudo em que se analisa o comportamento dos preços e os factores que determinam a sua oscilação.

Rodrigues nunca fala em bolhas especulativas, mas elas estão bem vincadas na explicação do modelo matemático que serviu aos autores para encontrar “sinais de exuberância” nos preços residenciais. Até porque se aplicaram modelos económicos que foram usados para estudar a bolha especulativa norte-americana que deu origem ao subprime.

Em termos de metodologia, foram usadas regressões de quantidade para avaliar se houve divergência entre os preços da habitação e os seus fundamentos, e se a exuberância é encontrada à medida que o crescimento dos preços da habitação persiste.

Entre os vários indicadores macroeconómicos que eram possíveis de trabalhar, os investigadores centraram o seu trabalho na análise de três determinantes fundamentais: o rendimento disponível per capita, as taxas de juro do mercado monetário a três meses, e os dados da população activa. Estas variáveis ajudaram a explicar, ao longo das últimas décadas, a variação dos preços reais da habitação, quer quando sobem, quer quando descem – como aconteceu no período de assistência financeira.

O estudo demonstra que nas duas décadas anteriores a 2007 os preços da habitação em Portugal cresceram em média menos de 1% por ano, em termos reais, e passaram a aumentar 1% a partir daí e até 2019.

Porém, na última década, houve dois períodos com evolução altamente diferenciada: o preço das casas desceu 4% entre 2008 e 2013, e acelerou mais de 6% ao longo dos últimos cinco anos. Com taxas de crescimento desta grandeza, é natural que a Comissão Europeia se manifestasse preocupada com a sobrevalorização das casas.

Contágios das bolhas

Com os dados apurados, a equipa coordenada por Paulo Rodrigues procurou perceber como é que estas “bolhas” se comportavam em cada mercado local, sabendo que falar de comportamento exuberante no mercado de habitação sem ter em conta as diferenças que existem em cada local não seria suficientemente informativo.

Utilizando dados de preços a nível local para os 18 distritos portugueses (e respectivas freguesias de Lisboa e Porto), foram usados testes recorrentes de Dickey-Fuller para detectar comportamentos exuberantes (o teste GSADF), podendo posteriormente analisar os efeitos de contágio às freguesias e municípios vizinhos, demonstrando como uma bolha num mercado migra para outro.

Nessa análise foi possível perceber que, antes de 2016, as provas de comportamento exuberante – isto é, preços residenciais muito acima dos fundamentos macroeconómicos que os determinam – eram “bastante esporádicas na amostra”. E que, a partir de meados de 2016, as primeiras provas do “comportamento exuberante subsequentemente prolongado e generalizado” foram registadas em Lisboa e Faro.

Até Dezembro de 2017, o comportamento exuberante já era detectado em quatro dos 18 distritos considerados (Braga, Bragança, Évora e Lisboa). Por fim, a análise desagregada relativa aos 18 distritos e 278 municípios de Portugal continental acabou a sugerir a existência de um crescimento extraordinário dos preços para a generalidade dos distritos.

Os investigadores procuraram sinais do efeito de contágio de Lisboa e Porto nos seus concelhos envolventes – os preços nas duas cidades principais sobem, empurrando a procura para as localidades limítrofes, fazendo também aí subir os preços. E perceberam que, apesar de Lisboa liderar o ciclo de exuberância, este parece ter terminado no segundo trimestre de 2019. Além disso, o comportamento exuberante no Porto não é evidente no final do quarto trimestre de 2018, “embora existam fortes indícios desse tipo de comportamento em vários distritos”.

Paulo Rodrigues não se atreve a encontrar explicação para estes comportamentos. Prefere antes ressalvar que estes resultados foram obtidos ainda sem terem sido incluídos na análise outros factores que os investigadores admitem que concorrem para este crescimento de preços – como o investimento em habitação turística, o investimento em imobiliário para efeitos de autorização de residência (“vistos gold) ou o investimento de grandes fundos imobiliários internacionais e os incentivos fiscais de que beneficiam.

O professor da Nova SBE explicou ao PÚBLICO que não estavam disponíveis estatísticas com séries temporais suficientes para serem incluídas na análise, e por isso o estudo encomendado pela FFMS procurou abordá-los de forma diferenciada, em outros capítulos.

Heterogeneidade

O economista Pedro Brinca, que também participou no estudo da FFMS, e é um dos autores que analisam a importância do mercado imobiliário para a dinâmica macroeconómica em Portugal, sublinha o facto de a taxa de crescimento de 6% do preço das casas identificada no estudo esconder “uma muito elevada heterogeneidade”.

Pedro Brinca começa por desvalorizar os “vistos gold” como sendo responsáveis pelo aumento de preços. “Um programa que permitiu o investimento de sete mil milhões de euros (90% dos quais em imobiliário) e implicou a transacção de 10.322 imóveis em dez anos, quando só no ano de 2021 se venderam mais de 160 mil casas, não tem peso nenhum”, atira.

Num outro capítulo do mesmo estudo, Pedro Brinca e João B. Duarte contestam a narrativa de que o preço dos bens imobiliários em Portugal é muito elevado, argumentando que as notícias que chamam a título os valores máximos a que chegam os preços são uma “visão distorcida da realidade, uma vez que o factor importante para as decisões dos agentes económicos são os preços relativos – preços de habitação ajustados à inflação”.

“Desde 2014, tem havido um crescimento robusto nos preços da habitação, mas se tivermos em conta os preços reais da habitação, o cenário não é tão impressionante”, escrevem no estudo. A principal diferença entre o mercado português e o restante mercado europeu encontra-se, antes, no mercado de arrendamento.

Na análise ao mercado de arrendamento percebe-se que há dois períodos muito distintos na evolução dos preços: antes de 2014, quando este preço era significativamente inferior à média europeia, e após 2014, período durante o qual Portugal demonstrou convergência com os seus pares europeus sobre esta matéria. A recuperação dos preços coincide com a explosão das rendas.

“O ano de 2014 é marcado por uma oferta limitada (uma vez que o investimento residencial tinha diminuído durante vários anos na altura) e por uma procura elevada, devido ao comportamento em alta do sector do turismo.” A explosão do valor das rendas, por falta de oferta, acabou por contribuir, “e muito”, para a escalada de preços.

No capítulo assinado por Pedro Brinca e João Duarte refere-se que “o aumento excessivo dos preços poderá estar associado a um crescimento substancial de crédito hipotecário para fins de acumulação de capital, num quadro em que existam expectativas de preços de habitação elevados”.

As conclusões são semelhantes, se olharmos para os preços da habitação em termos de avaliações bancárias, em vez do valor das transacções. “No entanto, deve referir-se que após a crise os bancos se tornaram mais cautelosos na concessão de crédito. Os bancos estão hoje muito mais robustos em todos os rácios, cumprem todos os critérios de solvabilidade e o risco sistémico não existe”, refere Pedro Brinca ao PÚBLICO.

O economista concede que o aumento das taxas de juro como medida de combate à inflação era uma inevitabilidade, e antevê a necessidade de muitas famílias virem a passar por ajustamentos dolorosos. Mas não prevê que as casas vão parar ao portfólio dos bancos – porque estes continuam a não ter nenhum interesse em resgatá-las. Ou que os preços das casas comecem por isso, e subitamente, a descer.

O mesmo admite Paulo Rodrigues, que aposta mais numa diminuição do volume de vendas e numa suavização dos preços do que numa queda de preços. Evitando futurologias, diz que o anunciado investimento em habitação (via Plano de Recuperação e Resiliência) estará longe de inundar o mercado e fazer baixar os preços. “Acredito que potencialmente pode haver um abrandamento no crescimento dos preços. Mas os últimos anos mostraram-nos que os preços exuberantes vieram para ficar.”


A evolução dos preços das casas, as suas causas, consequências e factores de contexto. Nesta série de seis trabalhos, o PÚBLICO faz um raio-X do mercado da habitação em Portugal, com o apoio da Fundação Francisco Manuel dos Santos, promotora do estudo O Mercado Imobiliário em Portugal, publicado em 2022.

Fundação Francisco Manuel dos Santos

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