Exposição
Doença bipolar: “O diagnóstico permitiu-me compreender e perdoar o meu pai”
O pai da fotógrafa Lea Thijs foi diagnosticado, em 2017, com doença bipolar. O convívio de ambos com os sintomas da doença, no entanto, ultrapassa os 20 anos. “O seu diagnóstico permitiu-me revisitar as minhas memórias de infância e compreender, perdoar e nutrir empatia por ele.” A exposição Safe House inaugura na Narrativa a 14 de Janeiro
A 2 de Dezembro de 2016, Alain Thijs escrevia no seu diário: “Esta nova tempestade estava a formar-se há semanas. Como quem sente o odor a chuva em tempo de seca antes da torrente começar. Conseguia cheirá-la. Antes, não parecia que fosse muito pesada, mas quando chegou percebi que era pior do que esperava.” O seu pensamento “rodopiava, mais e mais depressa”, “fora de controlo”. “Fecho os olhos e vejo cores a explodir, como fogo-de-artifício. Abro os olhos e não melhora. Fecha-os. Fecha-os bem. Tudo é vívido e nada faz sentido.” A palavra suicídio surge no texto, em maiúsculas. “Desaparece”, diz a si próprio, “acaba com este absurdo, com este sofrimento”. O nome das filhas surge logo antes das palavras “acalma-te”. “Elas precisam de ti. Vai melhorar.”
Alain Thijs, pai da fotógrafa Lea Thijs, foi diagnosticado com doença bipolar em 2017, embora conviva com os seus sintomas há mais de 20 anos. “Quando dei início ao projecto, o meu pai tinha sido diagnosticado há apenas dois anos”, conta, em entrevista ao P3, a fotógrafa de nacionalidade belga e sul-africana, aludindo ao projecto Safe House, que se encontra em exposição no espaço Narrativa, em Lisboa – cidade onde Thijs reside actualmente – a partir de 14 de Janeiro.
“Antes do diagnóstico, ele era acompanhado por um psicólogo, com quem discutia a sua infância traumática. Sempre assumimos que ele era uma pessoa depressiva e ansiosa, com problemas de gestão da ira e um passado pesado. Muitas pessoas têm esses sintomas.” Mas nem todas as pessoas que têm as características enumeradas por Lea sofrem de doença bipolar. Tradicionalmente chamada de doença maníaco-depressiva, a doença bipolar é crónica e caracteriza-se por alterações drásticas de humor, que alternam entre estados de euforia e de depressão com uma duração prolongada. Estima-se que cerca de 1% da população mundial já tenha sido diagnosticada com doença bipolar; em Portugal, existem cerca de 200 mil pessoas diagnosticadas.
“Quando descobrimos que ele tinha doença bipolar, o meu pai ficou aliviado porque podia ser medicado, compreendia-se melhor e encontrou muita informação online com a qual se podia relacionar”, recorda a fotógrafa. “A mim, o seu diagnóstico permitiu-me revisitar as minhas memórias de infância e compreender, perdoar e nutrir empatia por ele.”
A doença bipolar não afecta somente quem dela padece; afecta todos os que rodeiam o paciente. Neste caso, Lea teve de lidar com as oscilações de humor do pai desde a infância. “Recordo-me de alturas em que ele estava profundamente deprimido. Nessas alturas, ele ficava muito tempo no seu quarto, deixava de cozinhar e começávamos todos a comer comida pré-preparada (era ele quem cozinhava sempre), e a casa ficava mais desorganizada.”
Havia também períodos de ira, que Lea conta consistirem em “gritos, portas a bater, ir para o carro e conduzir agressivamente”. “Parecia que estava no limite de perder o controlo”, recorda. Mas nem sempre Alain tinha emoções negativas. “Nos seus períodos maníacos (de euforia), ele era muito divertido. Tinha projectos ambiciosos: comprou uma reserva natural na África do Sul (um local onde se podia arrendar uma casa aos fins-de-semana, rodeado de natureza e animais selvagens), tinha demasiados telescópios para uma só casa e inundava-nos de presentes. Um interesse, como num livro, podia levá-lo a comprar toda a colecção.”
É difícil separar a personalidade de Alain da sua doença; as experiências que o moldaram, ao longo dos anos, e o tornaram na pessoa que é não estão dissociadas da bipolaridade. “As questões relacionadas com ansiedade, com ira e com a depressão podem dever-se apenas à sua personalidade e/ou à sua doença. Os altos e baixos prolongavam-se durante semanas, mas ele também sabia escondê-las, porque não há muitos de que recorde.” Os pensamentos suicidas existiam também, e Alain tornou-se mais transparente no que lhes dizia respeito à medida que foi envelhecendo; mas, felizmente, nunca sucumbiu à tentação de agir em conformidade com esses pensamentos.
Presentemente, Alain encontra-se medicado e estável. “Para mim, a parte mais difícil de amar alguém com doença bipolar é passar a vida a tentar salvar essa pessoa”, explica Lea. “Eu tive de recorrer a um psicólogo após terminar o projecto para descarregar o peso da jornada e aprender a proteger-me. A nossa proximidade não podia implicar que ele partilhasse tudo comigo, por exemplo, as suas ideias suicidas. Foram definidos limites que nos fizeram bem. Ambos nos sentimos seguros.”
Desenvolver o projecto foi, para Lea e Alain, um processo colaborativo que deu origem a um fotolivro, editado em 2019 pela Setanta Books. “O projecto começou em Dezembro de 2017, quando regressei à África do Sul de férias. Estava perdida, não sabia bem o que fazer para o meu projecto final [da faculdade], então virei a lente para a minha família, como já tinha feito antes na ocasião do divórcio dos meus pais.” A ideia surgiu a partir de fotografias que Alain lhe enviava, através do WhatsApp, que ilustravam o seu estado de espírito. “Levei a minha câmara de grande formato para a África do Sul e percebi que era perfeita para documentar a minha relação com o meu pai.” O aparato fotográfico implica alguma lentidão no processo e uma escolha meticulosa do enquadramento e do assunto.
Assim, de cada vez que Lea preparava a câmara para uma sessão, ambos conversavam e definiam juntos o que seria retratado. “Decidi fotografar a preto-e-branco porque o meu pai é daltónico”, explica. Dessa forma, veriam o mesmo resultado final. “Ambos tivemos ideias e tentei ao máximo incluir a sua perspectiva da nossa relação mas também a minha experiência de contacto com a sua doença.”
O projecto aproximou Lea e Alain. “Conseguimos compreender-nos melhor.” A reacção ao conteúdo do projecto, após a edição do livro, no entanto, nem sempre foi a que esperava. “Foi difícil ver as reacções de amigos e familiares que não acreditavam ou não compreendiam o que significava ser bipolar.” Por outro lado, Lea pôde conhecer muitas pessoas que sofriam de doença mental ou que, como ela, eram familiares de alguém nessa circunstância. “Foi óptimo ver pessoas a relacionar-se com aquilo que conheço e experienciei.” A exposição de Safe House, na Narrativa, pode ser visitada até 18 de Fevereiro.
Linhas de apoio e de prevenção do suicídio em Portugal
SOS Voz Amiga 213 544 545 - 912 802 669 - 963 524 660 (das 16h às 24h) Linha Verde gratuita - 800 209 899 (das 21h à 24h)
Conversa Amiga 808 237 327 - 210 027 159 (das 15h às 22h)
Voades - Vozes Amigas de Esperança 222 030 707 (das 16h às 22h)
Telefone da Amizade 228 323 535 (das 16h às 23h)
Voz de Apoio 225 506 070 (das 21h às 24h)
SOS Estudante 915246060 - 969554545 - 239484020 (das 20h à 1h)
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