Petição vai obrigar Parlamento a discutir lei dos maus tratos aos animais

Tribunal Constitucional já disse nove vezes que lei viola a lei fundamental. Ministério Público pode agora desencadear processo para ser decretada inconstitucionalidade.

Foto
O Ministério Público arquivou recentemente o caso da morte de dezenas de animais em dois abrigos clandestinos em Santo Tirso PAULO PIMENTA

Uma petição destinada a obrigar o Parlamento a clarificar a lei dos maus tratos aos animais, que neste momento corre o risco de ser declarada inconstitucional, reuniu 12 mil assinaturas nas primeiras 36 horas em que esteve online. Os deputados estão obrigados a apreciar em plenário qualquer pedido subscrito por mais de 7500 pessoas.

O assunto assumiu particular relevância por os juízes do Tribunal Constitucional terem dito e repetido ao longo do último ano, nas decisões que tomaram até agora sobre nove casos de crueldade contra animais de companhia, que a lei que em 2014 transformou os maus tratos em crime viola a lei fundamental. E que a revisão que esta legislação sofreu em 2020 não sanou esse problema. Muito embora exista um grupo de juízes do Palácio Ratton que ainda não se pronunciou sobre o tema, não é expectável que a maioria venha a pronunciar-se pela legitimidade constitucional das normas em causa. E já havendo três decisões no Constitucional sobre a mais recente versão da lei — e seis sobre a versão original —, cabe agora ao Ministério Público desencadear o processo destinado a declarar a sua inconstitucionalidade de forma geral e abstracta, findo o qual os maus tratos poderão deixar de ser crime, muito embora continuem a ser punidos por outros diplomas legais.

Os conselheiros do Constitucional que já se debruçaram sobre o problema não são unânimes sobre a razão pela qual há violação da lei fundamental: se uns dizem que enquanto os animais não estiverem mencionados na lei fundamental a questão não fica resolvida, outros entendem que basta refazer a redacção da lei dos maus tratos para sanar o imbróglio. Num acórdão recente, os juízes expressam as dúvidas e perplexidades que lhes levantam as normas em vigor, nomeadamente ao nível da indefinição do conceito de animal de companhia. “Todos os animais podem ser de companhia ou apenas aqueles capazes de demonstrar afeição em relação aos seres humanos? Ou só os que usualmente e tradicionalmente são animais domésticos? Podem formigas num terrário ser consideradas como animais de companhia?”, interrogam. Para expressarem mais dúvidas: “Será legítimo alterar a voz dos cães de companhia para assegurar a tranquilidade e o bem-estar emocional e físico dos vizinhos? E cortar a cauda ou as orelhas a um cão com o intuito de o embelezar ou, em todo o caso, de o fazer actuar em espectáculos, invocando-se, para o efeito, a liberdade artística?”.

Alargar a criminalização

Daí que a petição solicite à Assembleia da República para aprofundar o regime penal em vigor, “acompanhando as preocupações já expressas pelo Tribunal Constitucional, quanto a estas e demais questões ou lacunas apontadas” pelos juízes conselheiros. Os deputados devem ainda, no entender dos subscritores, alargar a criminalização dos maus tratos aos restantes animais sencientes que não os de companhia e às condutas negligentes, ou seja, aos maus tratos não intencionais. Foi por esta norma não existir na lei que o Ministério Público arquivou recentemente o caso da morte de dezenas de animais em dois abrigos clandestinos em Santo Tirso. Quase 90 cães e quatro gatos pereceram carbonizados.

Aos juízes do Constitucional, a petição exige que “promovam uma interpretação ética e actualista da lei fundamental, adequada a uma sociedade civilizada, europeia e dos tempos modernos”, por forma a “evitarem aumentar ainda mais as consequências e os danos irreparáveis que esta situação de incerteza tem estado a causar na sociedade, quer aos animais quer aos cidadãos que se preocupam activamente com o bem-estar animal”. Por fim, os subscritores querem que a lei fundamental passe a mencionar expressamente os animais, algo que já foi proposto por vários partidos no actual processo de revisão constitucional.

Esta iniciativa segue-se a um manifesto sobre o mesmo assunto assinado por mais de oito dezenas de juristas. Cândida Almeida, Menezes Cordeiro, Armando Leandro, Francisco Bruto da Costa e João Pedro Charters Marchante são algumas das figuras que o subscreveram, tal como os ex-bastonários dos advogados Rogério Alves e Guilherme Figueiredo.

Sugerir correcção
Ler 1 comentários