Valença do Minho, não obstante a sua condição periférica, consubstanciou-se, pela catástrofe, no arquétipo das práticas comuns no património cultural imóvel do país. Por instantes, vemos todo o Portugal dos Monumentos naquele enorme deslize de terrapleno, num dos baluartes da icónica fortaleza.
Assistimos depois aos variados eufemismos, veiculados pela comunicação social: o bode expiatório é o mau tempo. Aparentemente, a coesão territorial, neste caso na Cultura, padece dos mesmos males que as restantes áreas governativas: insiste em parecer o que não é.
O Governo prontificou-se a empurrar a responsabilidade — de gestão de um monumento nacional — para o município de Valença. A Direcção-Regional de Cultura afirma que o derrube não põe em causa a candidatura à UNESCO. Todos abordam a consequência, mas poucos relevam a causa.
Sistematicamente, vai-se entendendo que tudo o que é de pedra não cai. Tudo o que é monumento, se se aguentou até aqui, aguentará mais uns anos. Só no mais objectivo dos azares isto acontece no durar de um qualquer mandato ministerial, na sua efémera duração de quatro anos – ou menos.
Raramente as programações dos monumentos nacionais — quando existem — integram planos de manutenção: e não estamos a falar de empreitadas delongadas de substituição de argamassas ou de colocação de bombas de drenagem. Referimo-nos à “simples” manutenção de limpeza de coberturas, estruturas de escoamento de águas, reparações de sanitários, substituição de luminárias e medidas de autoprotecção. Na maior das certezas, o que provocou o desastre patrimonial foi a ausência de um plano de manutenção e a sua respectiva operacionalização.
Todos os recintos muralhados, análogos à fortificação de Valença, têm originalmente sumidouros ao longo de todo o seu aparelho de alvenaria, que possibilitam a drenagem de águas pluviais, impedindo a saturação do terrapleno e a pressão interior na estrutura das escarpas. Por outras palavras, funciona como uma barragem: se se interromper o escoamento, acaba por transbordar ou rebentar. A fortificação abaluartada foi criada para resistir a pressão e impacto do exterior, mas não do interior – sobretudo se não for cuidada. A vegetação plantada nos terraplenos também é factor que contribui para a degradação da estrutura, por meio das suas raízes e da excessiva retenção de água. Arrisque-se também a dizer que a própria terraplanagem não foi, a dada altura, porventura numa intervenção de reabilitação menos cuidada, feita da melhor forma: as camadas de terra devem ser intercaladas com níveis de outros materiais mais permeáveis, como pedra ou areia.
Salvo melhor opinião: o que falhou foi a manutenção. E falhará até que o modelo de gestão se adapte à realidade e se prevejam nos planos de actividades dos monumentos, anualmente apresentados às tutelas, ou nas grandes opções do plano e orçamento dos municípios, as estratégias de manutenção.
Isso importa mais, no longo prazo, que as transitórias iniciativas para a fotografia. Do evento para a “captação dos públicos”. Da acção para preencher calendário e murais das redes sociais. Um monumento nacional, com um plano de manutenção adaptado às suas necessidades, vale por si próprio, sobretudo perante os sucessivos Orçamentos do Estado em que o parente pobre é sempre a Cultura – e, dentro dela, o Património.
Portugal é um país de reactivos, e a gestão cultural não é excepção. Corre-se atrás do prejuízo, no que a museus e monumentos diz respeito. E o resultado é que, para além do irrecuperável custo patrimonial – sublinhe-se “irrecuperável” –, há agora, no caso de Valença, um elevado custo financeiro do restauro.
No meio das poucas certezas, surgem naturalmente as dúvidas: deverá ser imputado a um município como Valença, com cerca de 14 mil habitantes, a responsabilidade maior de intervir e salvaguardar um elemento patrimonial de relevância nacional? É assim em Lisboa ou no Porto, por exemplo? Onde está a tal “coesão territorial”?
Qual é o Presidente de Câmara (em Portugal) que se prontifica a justificar que são os seus munícipes, contribuintes de um determinado município, que devem ser anualmente onerados pela manutenção de um elemento patrimonial de relevância nacional? Quantos saneamentos básicos não se conseguem com, vá lá, os 150 mil ou 200 mil euros, da limpeza de uns buracos, por ano? Quantos concertos de Ano Novo ou iluminação de Natal não se pagam com isso? Quantos votos valem preservar umas paredes antigas?
Quando alegadamente forem extintas, aparentemente a breve prazo, as Direcções-Regionais de Cultura, com competências de salvaguarda destes equipamentos, quem é que os vai gerir? Com que recursos? Com que garantias?
Os municípios têm vocações objectivamente circunscritas aos respectivos territórios. O património cultural, com classificação de interesse público e nacional, dificilmente tem objectivos conciliáveis com isso. Isto se o que importa não é apenas um rótulo, e a eterna ilusão que é o turismo que nos vai salvar a Cultura e as pedras da muralha.
O património cultural não pode sistematicamente servir, em regime de exclusividade, para conquistas eleitorais ou como cenário de show off. A responsabilidade da actual geração é mantê-lo e conservá-lo para a próxima – que julgará o nosso esforço em conformidade. É claro que culpar a chuva é sempre o mais simples. O que não se controla tem as costas largas. E, sobretudo, não dá trabalho acusar o intangível.