O Coração Ainda Bate. A vida adiada

Inês Meneses escreve sobre a culpa.

A culpa, não raras vezes, é um impedimento para a felicidade, mesmo que a felicidade seja um conceito inventado para nos deixar aquém do conseguido. Na verdade, a culpa é um banal campo de futebol com duas balizas. E nós podemos chutar para um dos lados julgando que aí estará o bem – e que no outro estará o mal –, mas a vida, e o que nela se mistura, não pode ter só duas balizas. Há, de facto, muito mais em jogo. Seja como for, na hora do remate, a angústia fica do lado de quem atira e não do guarda-redes livre de arbítrios.

A culpa confunde-nos, subtrai-nos o prazer, adia-o. É maquiavélica porque é premeditada sem que o saibamos.

Desejamos algo que tememos revelar. Conseguimos algo que gerimos, por forma a não extravasarmos. Lá está ela, a culpa, através do pensamento de cada um de nós, a avisar-nos: será vaidade? Será orgulho sem cabimento? Será soberba?

Nem todos estão hoje acompanhados da culpa: fazemos este caminho lento da nossa emancipação. A culpa é tão insidiosa que aparece sempre a apoucar o momento: “É bonito, mas não foi caro.” “Fico muito contente, mas foste gastar dinheiro.” “Escolhi um, mas amava os dois.”

A culpa não nos deixa viver verdadeiramente a vida, como se o prato, que parecia apetecível, chegasse frio à mesa. “Que pena! Parecia tão bom!” A culpa é tudo isto e muito mais: são vidas adiadas, riscos que nunca se irá correr, diários que terminam com um “foi quase, mas não consegui”.

A culpa ganhou relevância através da religião, mas sempre viveu em nós. Abate-se, sobretudo, sobre os que conseguem as conquistas a pulso, sobre o homem que comprou o carro que – acha ele – não devia e se deita a pensar se não terá sido um erro, depois de se ter passeado pela avenida. Abate-se sobre as mulheres que adiaram a vontade (ou a meta) de serem mães para, primeiro, poderem ir mais longe na carreira merecida. Muito justa. Mais que justa. Elas chegam a casa depois de um dia cheio em que tiveram de provar dez vezes que é inquestionável o seu talento e empenho e vão cozinhar. E ainda se deitam a pensar: “Estarei a ser justa com a minha família por ainda não lhe ter dado um filho?”

A culpa veste-se de tantas formas que às vezes é difícil distinguirmo-nos dela. Rouba-nos protagonismo. Confunde-nos. Já não sabemos se somos nós que estamos a ser injustos ou se é ela que nos aparece dissimulada.

Um homem e uma mulher vivem 40 anos infelizes. Ambos se culpam por não darem mais – não conseguem. Para não desiludir os outros e a si mesmos, vão além das suas possibilidades e dos seus princípios e dão até aquilo em que não acreditam. A culpa impede-os de ser felizes. Vou retirar o “felizes”: a culpa impede-os de procurar outras formas de viver e tentar a alegria diária, quotidiana, aquela que não é baça porque foi desejada, porque nos atira para fora da cama à espera de sermos melhores.

A culpa teima em deixar-nos tolhidos com poucos ou nenhuns movimentos. Aqui e ali, uma proibição pode tornar-se apetecível. A culpa pesará depois na hora do recolhimento. A culpa que nos impede tantas vezes de viver outra vida ou saborear o momento atira-nos subitamente para essa proibição fugaz com a qual a nossa consciência medirá forças, mas preferimos tudo isso ao julgamento final. Pensando melhor, a culpa, no fundo, é um juiz que não anuncia sentenças, porque somos nós próprios a antecipá-las. A culpa é o olhar dos outros sobre nós, mas, antes de tudo, é o nosso olhar, que ainda não aprendeu a ser livre.

É preciso desconstruir a culpa. Não a dos actos que envergonham a humanidade, mas aquela pequenina que nos mói no dia-a-dia e nos livra do bem que, tal como a culpa, também espreita ao virar da esquina. O bem e a culpa estão aqui lado a lado. Não tenho dúvidas.

Há momentos em que para seguirmos em frente temos de fazer alguns arranhões. Mas nenhuma história se conta sem marcas na pele.

Como ouvi há dias num filme, “a culpa é um desperdício de sentimento”. Concordo. A culpa adia vidas que nunca ficarão completas.


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