Sortelha: memória de um dia de vento

“Encostada à parede, senti o vento de Junho, tão intenso e inesquecível que se haveria de tornar para mim o modelo de todos os ventos do resto da minha vida”, escreve a leitora Maria Goreti Catorze.

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Sortelha Maria Goreti Catorze
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Sortelha Maria Goreti Catorze

Li há tempos no PÚBLICO que está a ser rodado em Portugal um filme (Damsel) para a Netflix. Parte das filmagens decorre em Sortelha. As restantes são no Convento de Cristo (Tomar), Mosteiro da Batalha, Douro e serra da Estrela. Mas é de Sortelha que vou falar.

Sortelha é uma aldeia da Beira Alta, onde fui várias vezes em passeio. Mas a ida que me ficou gravada para sempre na memória foi a primeira, em Junho de 1982. Era sábado, 5 de Junho. Como tantas famílias da Beira Baixa que viviam perto da fronteira, tirámos o dia de descanso para fazer compras em Espanha: Fuentes d' Oñoro vivia desse pequeno comércio com os portugueses: brinquedos, caramelos, artigos de perfumaria espanhola. Hoje revivo esses tempos comprando sabonetes Heno de Pravia numa loja espanhola online.

Em Junho os dias são muito compridos e os muros das quintas abandonadas estão cobertos de rosas de Santa Teresinha que exalam um perfume adocicado. No regresso do paraíso das compras decidimos parar em Sortelha (concelho do Sabugal). Nessa época era uma aldeia perdida no tempo, tinha deixado de interessar como fortaleza defensiva, o turismo "histórico" ainda não passava por esses sítios, o conceito de "reabilitação urbana" não tinha sido inventado, a classificação de aldeias históricas não existia.

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Sortelha MARIA GORETI CATORZE

Mas tinha um castelo, uma torre de menagem, um pelourinho e um casario de pedra intocado desde a Idade Média. Subi à torre de menagem nesse fim de tarde, dias antes do início do campeonato do mundo de futebol Espanha de 82, ali ao lado. E foi então que, encostada à parede, senti o vento de Junho, tão intenso e inesquecível que se haveria de tornar para mim o modelo e anemómetro de todos os ventos do resto da minha vida.

Volto décadas depois ao que se passou a denominar "a aldeia histórica de Sortelha". É agora um local turístico com as ruas aplanadas, passadiços de metal, placas e painéis informativos, tudo muito arranjado para os forasteiros se deleitarem com esse aprazível museu ao ar livre. A dúvida é se ainda por lá vagueiam os espíritos do tempo passado. É possível que sim. Cada um pode avaliar por si.

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O que posso assegurar é que do cimo das muralhas do castelo continua a avistar-se o horizonte granítico até Espanha (de onde já não se espera perigo de invasor iminente...), as rosas perfumadas de Junho resistem nalguns velhos (e novos) muros e o vento morno da Primavera não abandonou a singela torre de menagem. O resto haveremos de ver no filme. Não me esqueço do Eduardo Prado Coelho ter escrito (neste mesmo PÚBLICO) que nunca sentiu o vento assobiar com tanta autenticidade como no cinema…

Maria Goreti Catorze

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