Produtores (e embaixadores vários) do vinho espumante dizem-nos sempre que este é um produto que vai bem com tudo. Não estamos em condições de dizer tanto, mas que o espumante (bruto) casa bem com o fiel amigo, ai isso é verdade. A Comissão Vitivinícola Regional de Távora-Varosa e a Escola de Hotelaria e Turismo do Porto (EHTP) promoveram, há dias, uma harmonização de vinhos da região com receitas de bacalhau confeccionadas com as partes menos nobres do peixe.
Espumantes frescos e versáteis. Brancos com acidez elevada, muito gastronómicos. E um tinto que é um verdadeiro tesourinho resgatado à cave. Os produtores escolheram os vinhos, mas desconheciam as harmonizações até se sentarem à mesa. Houve quem ficasse a conhecer melhor os seus próprios vinhos e houve quem ficasse agradavelmente surpreendido com os vinhos dos outros.
Depois das boas-vindas, com os indefectíveis rissóis de bacalhau, uma bôla de Lamego recheada com bacalhau e azeitonas, pataniscas e bolinhos (pastéis para os leitores do Sul), os finalistas do curso de Gestão e Produção de Cozinha serviram, como entrada um húmus de grão-de-bico e bacalhau com pó de azeitona, chip de batata roxa, sésamo tostado e grissini feitos ali mesmo na escola, e, a acompanhar, o espumante Terras do Demo Verdelho 2021, da Cooperativa Agrícola do Távora.
Com "cerca de ano e meio em cave" e uvas de vinhas com "altitudes entre os 600 e os 900 metros", como explicou João Silva, presidente da cooperativa desde 2003, a frescura deste espumante de Verdelho limpa o palato do sal cremoso do húmus a cada golo, sem deixar de brilhar per si. Pela fruta, pelo final de boca persistente. Como numa dança harmoniosa, em que é difícil dizer quem conduz quem.
Foi servida uma segunda entrada, um carpaccio de bacalhau com pó de azeitona, curgete bringida e gel de gaspacho, com um Terras do Demo Touriga Nacional Rosé 2021, uma combinação menos surpreendente mas que ainda assim deu que falar à mesa, e entre as várias mesas do Restaurante Pedagógico da EHTP. "Para nós produtores, termos estes desafios de sabermos com o que vão os nossos vinhos, esta ligação, é importantíssimo", comentou o senhor que se seguiu.
Marcos Hehn apresentou o espumante Família Hehn Reserva 2014 que a equipa da EHTP casou com línguas de bacalhau em tempura servidas com cogumelos e crocante do mesmo, cenourinha grelhada e maionese vegan. O espumante de Touriga Nacional — "tem uma pequena percentagem de uvas tintas" —, Cerceal, Gouveio e Malvasia Fina, de vinhas "entre os 680 e os 730 metros de altitude", dá bem a entender o estágio sobre borras de "mais de três anos". Teríamos preferido bebê-lo com a primeira entrada.
Chegados aos pratos principais, a primeira grande surpresa, numa região que muitos dizem ser de espumante, alguns retratam como sendo de brancos e poucos (para não dizer um: Carlos e David Caixas, do Tempo Largo, só fazem tintos) identificam como tendo potencial para tintos. Ana Maria Pinto Ribeiro, da Casa de Santo António de Britiande, levou um Quinta dos Urgais Touriga Nacional 2005. Já não há (à venda, pelo menos), e foi o vinho que mais discussão criou à mesa. "O Távora-Varosa também será um bom território para vinhos tintos, apesar de tudo. Vinhos se calhar com estágios mais prolongados, são vinhos que a priori precisam de algum tempo para estar prontos para o consumidor. Com uma elegância marcada pela altitude", dizia-nos Marcos Hehn.
"Atrevi-me a trazer este vinho tinto do Távora-Varosa para mostrar que os nossos tintos também envelhecem bem." Aos 17, quase 18 anos, está bem o vinho, embora não pareça ter vida muito mais longa, cumpriu a prazerosa missão de mostrar outra dimensão da região. A ligação com o arroz malandro de bacalhau (feito com as caras), tomate e coentros não era óbvia e interrogou alguns comensais até o prato estar limpinho. A Touriga é do Souto, Penedono, onde a Casa de Santo António de Britiande tem vinhas a cerca de 750 metros de altitude.
Em 2023, região vai a outras escolas de hotelaria
Seguiu-se a interpretação dos futuros chefs do clássico bacalhau à Brás, com sames (a bexiga-natatória localizada debaixo da espinha dorsal do bacalhau), bacalhau de meia cura, cebola confitada e gema a baixa temperatura. E a surpresa do branco da Quinta da Moita, um colheita de 2019 com a Indicação Geográfica Terras de Cister e feito a 600 metros de altitude com Arinto, Malvasia Fina, Gouveio e Fernão Pires. "Esse é o nosso único vinho", partilhou o "inexperiente" José Fernandes, que com Maria do Rosário Silva gere a partir da Suíça vinhas, oliveiras e um agro-turismo inaugurado este ano.
Novo nestas coisas do vinho, José conseguiu surpreender Luís Leocádio, um dos enólogos mais vigiados (por boas razões, entenda-se) da sua geração, que provou ali pela primeira vez o branco da Quinta da Moita. Gabou-lhe a acidez, que faz dele um vinho gastronómico, como o seu Titan of Távora-Varosa. Leocádio, que "já tinha um grande carinho" pela região quando, ainda no Douro, mesmo ali ao pé, tinha "sempre aquele olhar para a miúda do lado", levou para o evento da EHTP esse branco "um bocadinho diferente", com "um lado muito mineral" e "acidez muito alta". As castas são as mesmas do branco da Quinta da Moita à excepção do Arinto, as vinhas ficam em redor da albufeira da barragem do Vilar, a 700 metros de altitude.
Muito gastronómico, este "espumante sem bolhas", como gosta de o descrever, casou muito bem com o bacalhau confitado em azeite com puré de abóbora, espargos cozinhados no vapor, cebola caramelizada e rebentos de ervilha. Luís Leocádio descreveria assim no final os vinhos de Távora-Varosa, bem podia estar a falar deste seu Titan. "São vinhos que tendo acidez limpam a boca, deixando o palato salivante à procura de mais comida e, quando esta ocupa o lugar o vinho, a boca volta a pedir comida. Tem tudo a ver com o equilíbrio entre acidez e mineralidade. Não sendo vinhos tecnológicos, os vinhos de Távora-Varosa têm naturalmente este sabor e cheio a pedra, este lado mais misterioso, que os torna muito gastronómicos."
Com o mini-mini-éclair com ganache de limão (cuja adopção vários se apressaram a aconselhar às caves em Ucanha) e glaçage de citrinos e a bola de chocolate, onde a equipa de Gestão e Produção de Pastelaria escondeu a mousse de chocolate, o pão-de-ló, os frutos vermelhos, coulis de frutos vermelhos e o cheirinho de Amaretto, a Murganheira (cepas entre 500 e 700 metros de altitude)serviu o seu espumante de Chardonnay colheita de 2015 e o Millésime 2011, o produto que a casa considera "mais champanhês", explicou Herlander Lourenço.
Em 2023, com outros produtos e o mesmo mote, os vinhos de Távora-Varosa vão "percorrer todas as escolas de hotelaria" do país, anunciou o presidente da Comissão Vitivinícola Regional, José Pereira, cuja direcção tem vindo a aproveitar toda e qualquer oportunidade para estabelecer parcerias que promovam a região. "Estes alunos nunca esquecerão a experiência". Nem os vinhos de Távora-Varosa.