Uma história de amor (im)possível entre um urso e a sua treinadora de circo

A artista de circo Maxy viu a ursa Natasha nascer e alimentou-a com um biberão "como se fosse uma criança". Tornaram-se inseparáveis, dentro e fora das tendas de circo. Só a morte as separou, 43 anos depois. O holandês Loek Buter fotografou "a história de amor entre uma mulher e um urso".

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Quando a ursa Natasha nasceu, em Sofia, Bulgária, em 1978, a alemã Maxy Niedermeyer alimentou-a a biberão, "como se fosse uma criança". Desde então, as duas tornaram-se inseparáveis; percorreram, juntas, ao longo de mais de 30 anos, sob o olhar hipnotizado de milhares de pessoas, muitos países da Ásia, África e Europa.

Maxy, filha de artistas de circo e apaixonada por animais, teve desde muito cedo a certeza de que queria viver entre eles; ou seria veterinária ou treinadora. Optou pela segunda. Aos 80 anos, raramente revela a estranhos qual era a sua profissão. O mundo mudou e a actividade que exercia, antes encarada como bela, brava, fascinante, é hoje ilegal em muitos estados europeus e olhada, por milhões de pessoas, com reprovação.

Entre 2014 e 2021, o fotógrafo holandês Loek Buter acompanhou o pacato quotidiano de Natasha e Maxy, nos Países Baixos. "A carreira de ambas terminou abruptamente quando a União Europeia proibiu as performances com animais selvagens", pode ler-se na sinopse do projecto A Bear in the Lowlands, que se encontra em exposição no Museu Kunsthal, em Roterdão. "Quando Maxy veio para os Países Baixos, os seus animais [o tigre Diana e um cavalo] ficaram ao cuidado de uma fundação. Mas o elo de ligação entre Maxy e Natasha era tão forte que seria muito difícil separá-las. Por isso, após consulta ao Governo holandês, ficou decidido que seria melhor que permanecessem juntas."

Assim, a ursa Natasha pôde "desfrutar de uma reforma bem merecida" junto da sua treinadora. O tigre Diana, refere Loek, morreu um ano após ter dado entrada no santuário. "A treinadora Maxy visitava-o, mas percebia que ele estava cada vez mais deprimido. Acredita que o facto de ele ter mudado de rotina e de ter perdido a ligação com o cavalo, que era seu companheiro e amigo de longa data, pode ter contribuído para isso. Foi uma mudança muito pesada." O cavalo, cujo nome o fotógrafo não recorda, permaneceu em Itália e "poderá ainda estar vivo". 

Maxy garantiu a Loek que priorizou, em todos os momentos, o cuidado dos seus animais, ao longo da sua extensa carreira. "[Ela contou que] todo o dinheiro que ganhava nos espectáculos era gasto em comida, alojamento e cuidados médicos para os animais", refere o fotógrafo. "Maxy dormia poucas horas cada noite e nunca teve tempo para uma vida social, para a sua família ou para tirar férias."

Numa da imagens pode ver-se Maxy a dar uma Cola a Natasha, "a sua bebida favorita"; se, por um lado, esse acto pode ser olhado com reprovação, por outro Loek refere que Natasha viveu até aos 43 anos e que "a esperança média de vida de animais da mesma espécie raramente ultrapassa os 20". "Maxy sabe que há pessoas que tratam mal os animais que têm a seu cuidado, mas também sabe que sempre tratou bem os seus", refere, em entrevista, o fotógrafo holandês.

Mas o que significa "tratar bem" os animais? Que diferenças de tratamento são exigidas, perante a lei, diante de diferentes tipos de animais? "Quero que as pessoas reflictam sobre isso", refere Loek. "Será que pode existir uma relação saudável entre uma mulher e um animal selvagem? Qual a diferença que existe no que toca gatos e cães?" O holandês sublinha que concorda com a ideia de que "animais selvagens não devem estar em circos". Mas deixa a questão: "Será que os animais em cativeiro não podem também ter vidas felizes?"

Na sua opinião, as regras mudaram depressa, no que a animais selvagens diz respeito, e as soluções encontradas para fazer face às mudanças podem não ser ainda as melhores. "A forma como as coisas terminam...", deixa Loek em aberto, encolhendo os ombros. "Maxy e Natasha partilharam as suas vidas durante 43 anos. Também houve momentos bons, a Natasha foi bem alimentada, foi escovada. A vida em ambiente selvagem também pode ser muito difícil, assim como a vida em cativeiro."

Pode a relação entre humanos e animais ser vista a preto e branco? Não existirão tons de cinzento? "Nem todas as pessoas conseguem estabelecer uma relação afectiva com um urso — muito poucas conseguirão. Há muitas pessoas que têm animais selvagens como animais de estimação para simplesmente os exibirem. E também há muitas pessoas que têm gatos ou cães e que não sabem ou não querem cuidar bem deles."

Se, por um lado, existem anúncios da União Europeia a apelar ao consumo de carne suína — consumo que pressupõe que porcos vivam as suas vidas inteiramente em cativeiro com o único intuito de serem mortos e consumidos por humanos , existem, por outro lado, regulamentos que vigoram no mesmo território que protegem animais selvagens e domésticos de maus tratos.

"Estas são questões muito complexas", conclui Loek. Para cada categoria animal existem leis de protecção diferentes, mas essas estão associadas a quê, se não à percepção humana (temporal e mutável) relativa à senciência, utilidade ou propósito de vida de cada animal? Se os parques zoológicos podem, de acordo com a lei, albergar animais selvagens com o propósito de entreter visitantes, o que separa essas instituições dos circos? E o que distingue um espectáculo com golfinhos amestrados em tanques de um espectáculo com leões amestrados numa arena?"

Nos últimos anos em que visitou Maxy, Loek viu-a ficar "cada vez mais triste". "Nos seus tempos áureos, Maxy escreveu um livro que vendeu milhares de exemplares na Bulgária sobre a sua itinerância na companhia dos seus animais. E pensava escrever um novo livro durante a sua reforma, mas nunca o fez." A alemã adivinha que não seria bem recebido nos dias de hoje. Os holofotes do espectáculo incessante que foi a sua vida apagaram-se abruptamente e transformaram as suas conquistas em aberrações. E, com esse espelho diante de si, Maxy tornou-se cada vez mais refém da sua própria história de vida. 

"Tive de prometer-lhe que não lançaria esta série antes de a Natasha morrer", conta o fotógrafo. "Ela manteve a Natasha junto de si e longe do olhar de todos durante anos. Temia que um dia a levassem." Natasha acabou por falecer, já com idade muito avançada, em 2021.

"Elas viajaram juntas por todo o mundo e esgotaram espectáculos da Alemanha a Israel, da Tunísia ao Azerbaijão. O que era aplaudido em tendas de circo a abarrotar há 50 anos é hoje entendido pelos europeus como sofrimento animal inaceitável." Mas Maxy, Natasha e as suas histórias existem e revelam-se nas imagens de Loek, dando a cada espectador a liberdade de pensar o que quiser sobre elas. "Muitas pessoas começam por ter pena da ursa Natasha e da sua vida infeliz. Mas, à medida que vão conhecendo melhor os detalhes da história, a sua percepção vai mudando. Este projecto narra, no fundo, a história de amor entre uma mulher e um urso."

Maxy passeia Natasha. Maxy usa o seu antigo fato de espectáculo durante o passeio com Natasha. Depois da reforma, é importante que ambas se mantenham activas. 2014.
Maxy passeia Natasha. Maxy usa o seu antigo fato de espectáculo durante o passeio com Natasha. Depois da reforma, é importante que ambas se mantenham activas. 2014. ©Loek Buter
Natascha a beber a sua bebida favorita, Cola, a partir de uma garrafa.
Natascha a beber a sua bebida favorita, Cola, a partir de uma garrafa. ©Loek Buter
Maxy posa no seu antigo fato de espectáculo. Maxy desenhou e costurou todos os seus figurinos; este foi feito para um espectáculo em Taiwan, em 1996. A vida no circo é exigente. Vários espectáculos por dia, o tratamento e treinamento dos animais e, por vezes, viagens para novas cidades três vezes por semana. 2014.
Maxy posa no seu antigo fato de espectáculo. Maxy desenhou e costurou todos os seus figurinos; este foi feito para um espectáculo em Taiwan, em 1996. A vida no circo é exigente. Vários espectáculos por dia, o tratamento e treinamento dos animais e, por vezes, viagens para novas cidades três vezes por semana. 2014. ©Loek Buter
Maxy abraça Natasha. O laço entre Natasha e Maxy é forte. Agora, Maxy já não se atreve a dizer a ninguém que um dia treinou animais. É difícil para ela perceber a mudança de paradigma. O seu objectivo era mostrar às pessoas que os animais selvagens também podem ser amáveis e não apenas criaturas perigosas que devem ser mantidas à distância. 2014.
Maxy abraça Natasha. O laço entre Natasha e Maxy é forte. Agora, Maxy já não se atreve a dizer a ninguém que um dia treinou animais. É difícil para ela perceber a mudança de paradigma. O seu objectivo era mostrar às pessoas que os animais selvagens também podem ser amáveis e não apenas criaturas perigosas que devem ser mantidas à distância. 2014. ©Loek Buter
Maxy escreveu um livro sobre a sua experiência como tratadora e treinadora de animais selvagens. Pensava, na sua reforma, escrever um novo livro, mas a mudança de paradigma relativamente aos animais no contexto circense tornou esse plano impossível.
Maxy escreveu um livro sobre a sua experiência como tratadora e treinadora de animais selvagens. Pensava, na sua reforma, escrever um novo livro, mas a mudança de paradigma relativamente aos animais no contexto circense tornou esse plano impossível. ©Loek Buter
Retrato de Maxy e Natasha, na Bulgária, em 2001. No pico da sua carreira, Maxy deu espectáculos para três mil pessoas. Todos os anos, ela escrevia a novos circos, com os quais viajou por todo o mundo, desde a Alemanha até Israel, desde a Tunísia ao Azebeijão. A sua carreira terminou abruptamente em Itália, em 2014.
Retrato de Maxy e Natasha, na Bulgária, em 2001. No pico da sua carreira, Maxy deu espectáculos para três mil pessoas. Todos os anos, ela escrevia a novos circos, com os quais viajou por todo o mundo, desde a Alemanha até Israel, desde a Tunísia ao Azebeijão. A sua carreira terminou abruptamente em Itália, em 2014. ©Loek Buter
Peruca e tiara. 2014
Peruca e tiara. 2014 ©Loek Buter
Maxy escova Natasha, 2020. O "casaco de Inverno" de Natasha dá lugar a um "casaco de Verão". Cuidar dos animais sempre foi a prioridade de Maxy. Todo o dinheiro que ganhava era gasto em comida, alojamento e cuidados médicos dos animais. Maxy dormia poucas horas cada noite e nunca teve tempo para uma vida social, para a sua família ou para tirar férias.
Maxy escova Natasha, 2020. O "casaco de Inverno" de Natasha dá lugar a um "casaco de Verão". Cuidar dos animais sempre foi a prioridade de Maxy. Todo o dinheiro que ganhava era gasto em comida, alojamento e cuidados médicos dos animais. Maxy dormia poucas horas cada noite e nunca teve tempo para uma vida social, para a sua família ou para tirar férias. ©Loek Buter
Retrato de Natasha, 2018. As unhas da Natasha nunca ficam gastas em cativeiro. Maxy cortava as suas unhas regularmente.
Retrato de Natasha, 2018. As unhas da Natasha nunca ficam gastas em cativeiro. Maxy cortava as suas unhas regularmente. ©Loek Buter
Maxy segurando as aparas das unhas de Natasha.
Maxy segurando as aparas das unhas de Natasha. ©Loek Buter
O local onde Natascha está sepultada, 2021. A Natasha foi enterrada num cemitério para animais, De Aarde, em Grashoek, Países Baixos.
O local onde Natascha está sepultada, 2021. A Natasha foi enterrada num cemitério para animais, De Aarde, em Grashoek, Países Baixos. ©Loek Buter