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As cheias de 1967, em Oeiras, pela lente e testemunhos de quem as viveu
Entre 25 e 26 de Novembro de 1967, choveu, choveu, choveu. O projecto Histórias de Vida recolheu as lembranças de quem sobreviveu às cheias de 1967, em Oeiras: as histórias de morte trágica, de sobrevivência, de pilhagem e de solidariedade, contadas na primeira pessoa. O concelho, sobretudo a freguesia de Algés, foi um dos mais afectados pelo mau tempo que atingiu Lisboa nos últimos dias.
No dia 25 de Novembro de 1967, sábado, pelas 17h já chovia profusamente quando Elisabeth Aguardela saiu, pela primeira vez com o filho recém-nascido nos braços, da clínica em Alvalade onde tinha dado à luz. Apanhou um táxi com destino ao Dafundo, em Oeiras, onde residia. "Quando chegámos ao Alto da Ajuda, o táxi começou a abrandar", narra, num dos muitos testemunhos de habitantes dados ao projecto multimédia Histórias de Vida, que foi desenvolvido até 2017 pela Câmara Municipal de Oeiras. "Da janela pude aperceber-me de um grande lençol de água que espalhava por toda a via, que acabou por deixar o carro submerso até meio." Pensou, recorda, que "seria só mais uma cheia, como tantas outras", mas enganava-se. Na noite de 25 para 26 de Novembro, viriam a perder a vida, em resultado das cheias, entre 500 a 700 pessoas.
"Já de manhã, enquanto dava de mamar ao bebé, uma enorme explosão estilhaçou os vidros e fez-me debruçar sobre o meu filho para o proteger", recorda Elisabeth, aludindo à primeira explosão, ocorrida no paiol do Carrascal. "Da rua chegava um som do megafone dos bombeiros a alertar as pessoas para saírem de casa e ouviam-se gritos por todo o lado. Esperava-se uma segunda explosão no paiol de Linda-a-Velha e, desta vez, as casas podiam ruir. Devíamos fugir para a praia."
Todos rumaram em direcção à praia de Algés. "Quando cheguei à rua, vi tudo coberto de lama e vi filas [de pessoas que se dirigiam] para a praia, muitas ainda em pijama, com animais e gaiolas que tentavam salvar, num ambiente sombrio e cinzento que lembrava um filme de guerra." A segunda explosão aconteceu, de facto, deixando, entre os desalojados uma sensação de insegurança e medo e também um rumor sobre um possível terceiro rebentamento, de efeitos ainda mais devastadores.
Helena Abreu, uma das detentoras de algumas imagens enviadas ao P3 visíveis nesta fotogaleria, recorda que, nas ruas alagadas, "os carros boiavam em círculos", sem chocar, "vagando ao sabor das correntes". "As pessoas das casas tiveram de subir para cima dos telhados. Lembro-me de ver a menina Maria e o filho, mais umas pessoas, a gritarem para que as fôssemos salvar. Era desesperante, ninguém sabia muito bem o que fazer."
Alguns dos habitantes recontam histórias de quem não sobreviveu à tragédia. Álvaro Paninho, antigo bombeiro voluntário de Algés, recorda a morte trágica de um polícia reformado, o senhor Pola. "Ele trabalhava nessas coisas dos 'papéis das finanças' para as pessoas e recebia uma percentagem." Num prédio da Rua de Camões, Pola desceu à cave para recolher dinheiro que lhe havia sido confiado pelos seus clientes. "Foi quando as portas rebentaram e ele ficou lá dentro", lamenta."Já não saiu."
Também numa cave, na Rua de Camões, faleceu uma mulher que acabava de celebrar 25 anos de carreira. Manuela Barreto, sobrevivente e vizinha da vítima, recorda que a mulher regressou ao seu quarto, quando a inundação era já bastante severa, para salvar alguns bens. "Voltou [à cave] a correr para tirar as jóias, só que a porta do quarto fechou-se. A água [começou] a subir vertiginosamente, ela aos gritos, aos gritos. O marido acudiu. [Ele] tentou abrir a porta e ela só dizia 'vai-te embora, que eu estou perdida. Salva-te, salva-te, salva-te!'. Morreu afogada lá dentro."
No dia que se seguiu à grande inundação, os prejuízos materiais eram visíveis, mas viriam a adensar-se com a onda de pilhagens que sucedeu. Helena Abreu recorda que, quando já não havia luz, a rua começou a ser invadida por pessoas que vinham ao saque". "Atiravam qualquer coisa pesada para partir os vidros das montras, entravam e saqueavam o que havia." A loja de móveis do senhor Antunes, que deu lugar à Padaria Portuguesa, foi vítima de pilhagem, aponta Helena. "Vimos móveis a serem levados, como também aconteceu à loja de electrodomésticos que ainda existe no mesmo lugar."
João Augusto Carriço Sant’Ana, antigo Comandante da Marinha Mercante, recorda que alguns aproveitaram o estado de caos para "ajudar" as pessoas a proteger os seus bens. "Ofereceram-se para lavar as roupas que se encontravam nas gavetas, mas algumas delas já não voltaram", recorda. Mas havia, também, quem quisesse genuinamente ajudar. Assim se formou também uma enorme onda solidária. "Na manhã [seguinte], com a descida das águas, tudo o que as pessoas tinham ficou soterrado na lama. Foi um bocado angustiante, na altura: nós, jovens, queríamos era ajudar." Muitos dos que ficaram desalojados em Oeiras ficaram temporariamente alojados no Palácio dos Anjos.
Elisabeth Aguardela, hoje já na terceira idade, recorda a morte de um colega do seu irmão, durante as cheias, que ficou soterrado numa cave; recorda a tia, que aprendeu a flutuar numa cave inundada e que, graças a esse feito, sobreviveu, os desalojados "que perderam tudo", "as lojas com tudo espalhado na rua, a secar". Em jeito de conclusão, atira que "com muito trabalho e entreajuda, as pessoas foram reconstruindo as suas vidas". "Arregaçaram as mangas, como se diz, e reconstruíram a partir dos escombros. Foi duro. Mas é extraordinária a capacidade que temos de começar de novo, de ver sempre uma candeia dentro da própria desgraça."