Que Natal quereria Jesus? O do consumismo, ou o do humanismo?
O Natal é materialismo no seu expoente máximo, é consumismo a um nível que deveria ser um crime contra a humanidade, e é o desperdício abissal de recursos que tentam comprar a nossa felicidade.
Quando voltei do Congo, em 2009, na primeira vez que lá estive, passados seis meses vividos nas profundidades de África, regressei a escassos dias do Natal. Faltavam-me comprar dois ou três presentes para a minha família, e por isso fui a um dos maiores shoppings do grande Porto, para resolver tudo ali. E senti algo que nunca tinha sentido na minha vida: ansiedade. Não sei se se pode falar em ataque de pânico, porque nunca perdi o controlo, mas senti um profundo mal-estar, e o meu peito só ficou mais leve quando saí.
É das perguntas que mais vezes me fazem quando falo em público sobre as missões humanitárias: “Como é regressar ao nosso mundo depois de ter visto tudo o que viu?”
Na minha cabeça, nas minhas memórias muito, muito frescas, e acima de tudo no meu coração estavam infinitas histórias de pessoas que me morreram nas mãos que seriam facilmente salvas, estivesse eu a exercer medicina em Portugal. E, também, a pobreza extrema de refugiados e deslocados de conflitos armados, que vivem sem sapatos e apenas com a roupa que têm no corpo. Há uma imagem, em particular, que estava mesmo muito vívida no meu olhar, que era a das crianças com T-shirts muito velhas, e usadas todos os dias sem alternância, e por isso a gola vinha até ao umbigo.
O que me estava a dilacerar o coração era o contraste tão real entre aquelas crianças quase ou sem roupa e a ostentação, o luxo, o consumismo desenfreado da época natalícia, onde os televisores são cada maiores e mais finos, e as roupas de marca têm preços que me doem na alma, enquanto ouvia conversas ao acaso, banhadas num materialismo obsceno, que me fez ter de abandonar aquele cenário.
Aprendi a regressar de missão aos poucos com menos dor, e aprendi a olhar para o Natal de outra maneira.
Na minha humilde visão sobre Jesus, há duas leituras: A sua vida, a análise histórica dos factos, a visão agnóstica de quem foi este homem. E a segunda leitura, a construção da religião à volta da sua vida, o simbolismo que é atribuído a muitos dos seus actos, e aquilo que concílios religiosos decidiram que seria a interpretação da sua vida, e do seu legado.
Pode parecer um contra-senso, mas eu enquanto ateu convicto, valorizo imensamente as duas leituras da vida de Jesus, porque os pontos que deixam poucas margens para dúvida são de um ser humano profundamente inspirador.
Jesus de Nazaré nasceu no que é hoje a Palestina que chora lágrimas de sangue, e é a personagem histórica mais conhecida da humanidade, segundo vários estudos. E ainda bem que o é.
Jesus e a sua vida está repleta de mensagens que nos fazem querer ser melhor pessoas: bondade, justiça, empatia, compaixão, igualdade entre humanos, partilha com os mais pobres, ajuda aos mais frágeis, abnegação do material, e tanto mais de humanismo, deixou para trás este homem bom.
E agora o que é o Natal? Ao longo dos últimos anos ou décadas, em que se tornou o Natal? Tornou-se quase na antítese de tudo o que a vida de Jesus representa. O Natal é materialismo no seu expoente máximo, é consumismo a um nível que deveria ser um crime contra a humanidade, e é o desperdício abissal de recursos que tentam comprar a nossa felicidade numa estratégia destinada a falhar.
Que fique bem claro que eu sou totalmente a favor dos eventos sociais de todos os tipos, e dos beijos e abraços especiais que damos nesta altura, à volta de mesas grandes ou pequenas, cheias de sorrisos e sentimentos de amor eterno.
O que me faz escrever este texto, é o facto de existir um manual de instruções implícito na sociedade em que o Natal é para gastar. Gastar em tudo nem que seja só para fazer mais lixo. Há muitos negócios que fazem o ano no Natal, há estratégias de marketing afinadas ao neurónio que nos deixam a salivar para comprar mais e mais, e até temos o 14.º mês de salário, para que nesta época se estoure dinheiro “extra”.
Antes que me interpretem mal, eu não desejo a ninguém ganhar menos, só acho antipedagógico um salário extra que parece empurrar as pessoas a gastar mal gasto, quando o mesmo dinheiro poderia estar distribuído nos salários ao longo do ano, e quem quisesse poupava para gastar no Natal.
Eu sei que estas palavras não me trarão muitos amigos, nomeadamente os que dependem do Natal, para o seu balanço anual de contas, mas não há mudanças sem perdas, e não pretendo atacar ninguém, pretendo sim atacar o consumismo e o materialismo como sendo das doenças crónicas mais graves da nossa sociedade actual, que destroem o próprio por achar que assim será feliz, que cega as pessoas da sua família global que sofre, e que contribui para o desperdício de energia, que põe em risco a continuação da humanidade neste planeta.
E sim, estou a pensar que há dez milhões de ucranianos literalmente em risco de morrer ao frio, há metade da população da Somália em risco de morrer à fome, e há 2,3 milhões de portugueses que estão abaixo do limiar da pobreza... E há sempre alguma coisa que podemos fazer.
A frase “eu não posso fazer nada” é falsa. E sinto, que se Jesus estivesse entre nós, ou se fossemos fiéis às mensagens que nos deixou, estes seriam os temas do Natal, e não o consumismo. O Natal que temos hoje, não me parece que seja o Natal que honre a memória de Jesus.
Que Natal quereria Jesus? O do consumismo, ou do humanismo?
Nesta época de festas, dedico a maior parte da minha energia e do meu dinheiro a tentar ajudar os mais frágeis, aquém e além fronteiras, porque me parece que é o que está certo, porque me faz mais feliz e alegre, porque foi essa a inspiração que a vida de Jesus deixou em mim, e porque nunca me vou esquecer do dia em que a ostentação me feriu o coração e as memórias de pessoas que me são tão queridas.
Bom Natal. Boas escolhas e boas reflexões.
As crónicas de Gustavo Carona são patrocinadas pela Fundação Manuel da Mota a favor da Médicos Sem Fronteiras