Foram precisos três anos para dar à estampa Beira Interior — Os Vinhos que Vêm do Frio, o primeiro sobre a região vitivinícola do Centro do país e a narrativa colectiva que fazia falta aos produtores beirões para valorizarem (ainda mais) os seus vinhos. É, simultaneamente, um objecto de coleccionador — fruto de um trabalho multidisciplinar e de pesquisa rigorosa e aturada — e um ponto de partida.
O enólogo e académico Virgílio Loureiro (faz "vinhos na Beira Interior há mais de 20 anos") e a antropóloga Constança Vieira de Andrade (tem estudado o património material e imaterial de diversas regiões vitivinícolas portuguesas) coordenaram uma obra que recua até ao tempo dos romanos, civilização que terá introduzido a produção de vinho na região, há coisa de dois mil anos. Uma obra que, nas palavras do primeiro, é para ser lida "nas linhas e nas entrelinhas".
Lançado esta terça-feira no Teatro Municipal da Guarda, o livro só estará à venda no início do próximo ano, na sede e na loja online da Comissão Vitivinícola Regional da Beira Interior (CVRBI), entidade promotora da obra, que tem outros três autores, o historiador Vítor Teixeira, o engenheiro silvicultor e especialista em solos Manuel Madeira e o arquitecto paisagista Pedro Arsénio.
Virgílio Loureiro começou por confessar que este "coffee table book" de quase 400 páginas não é o livro que desejavam fazer. "Queríamos que toda a gente pudesse ler sem qualquer dificuldade. E este livro não é para toda a gente ler, mas é o primeiro, e como primeiro, não podíamos começar pelo telhado. É o começo", justificou. E é, de facto, um começo, já que a CVRBI anunciou já uma edição da obra em inglês, mais ligeira, a lançar em 2023.
"Recolhemos memórias, práticas, absolutamente inéditas, curiosíssimas, tanto no que se refere à produção, como no que diz respeito ao consumo", enunciou Constança Vieira de Andrade, que na "análise do tecido social da Beira Interior" contou com a "colaboração absolutamente preciosa" de quem abriu as portas à equipa que trabalhou neste documento histórico. Nomeadamente, as casas (e famílias) que "nos últimos 200 anos geriram grandes propriedades agrícolas" na região e que entretanto abandonaram a produção vinícola. "Tivemos a sorte de contar com esta memória oral dos últimos 100 anos."
Mesmo quem conhece bem a região (ambos os coordenadores do livro são beirões) ficou surpreendido com algumas das descobertas que resultaram das muitas entrevistas realizadas e da pesquisa feita em arquivos privados, no acervo documental de adegas cooperativas, no arquivo do Instituto da Vinha e do Vinho e até na Torre do Tombo.
Os autores de Beira Interior — Os Vinhos que Vêm do Frio encontraram evidências de que também nesta região, que confronta a sul com o Alentejo, se produziu vinho da talha. Deram com "uma talha romana intacta" num pequeno produtor do Fundão e com outras talhas, bem preservadas, nas aldeias ribeirinhas de Vila Nova de Rodão (sim, junto ao Tejo já).
Constaram que também os espanhóis têm Síria, casta "perfumada e generosa dos dois lados da fronteira". Nuestros hermanos chamam-lhe Doña Blanca, Blanca de Monterrei ou Ciguente e têm "6000 hectares" desta uva branca, enquanto na Beira Interior a área plantada com a variedade é de "600 hectares".
A propósito das variedades ancestrais da viticultura ibérica, Virgílio Loureiro contou no teatro egitano outra estória que mete espanhóis e, neste caso, o Rufete. "Já sabia" o enólogo que esta era das castas tintas mais apreciadas aqui ao lado, mas ainda assim ficou "atrapalhado" quando um amigo espanhol lhe disse: "A casta é vossa — e não sei por que diz ele que é nossa —, mas quem a trabalha bem e ganha dinheiro com ela somos nós. Porque a exportamos há mais de 30 anos e é um dos vinhos mais caros que Espanha vende".
Há também um capítulo inteirinho dedicado às adegas cooperativas e à sua "relevante acção social". Criadas no Estado novo, fizeram "um trabalho notabilíssimo e muito pouco reconhecido, por preconceito político", referiu Virgílio Loureiro, e, apesar da aflição que muitas vivem no presente (com "o garrote na garganta"), "têm futuro". "Haja coragem e criatividade para as adaptar" aos tempos que vivemos, sentenciou.
Quando da plateia chegou uma pergunta sobre a auto-estima da região, Constança Vieira de Andrade partilhou a história de Celorico da Beira, a Celorico dos Bêbados, para dizer que auto-estima é coisa que nunca faltou à Beira Interior: reza a história (e um documento consultado pela antropóloga e museóloga no nosso Arquivo Nacional) que o vinho ali produzido era tão bom que à vila rumavam resmas de pessoas para o beber, e que esses aficionados beberiam vários copos tal era a qualidade do produto.
"O vinho não pode ser só bom. Se não tiver a história e o substrato cultural que lhe dá identidade, é só mais um vinho", sublinhou Virgílio Loureiro. Se, como diz "o professor", até aqui "cada um fazia como podia" para promover os seus vinhos — venham eles do frio ou nasçam mais a sul, a caminho do Alentejo —, agora fica mais fácil construir um storytelling que permita valorizar este produto identitário da Beira Interior.
"O desafio que deixo aqui hoje é que leiam o livro. E que quem está mais embrenhado no mundo do vinho leia as linhas e as entrelinhas."