Uma homenagem aos “corpos lindos e saudáveis” de pessoas seropositivas

Fidelia Avanzato fotografou os corpos nus de pessoas seropositivas para "subverter o estigma doloroso que as pessoas VIH positivas carregam". 

©Ida Fiele
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Ainda há quem estremeça de medo diante dos acrónimos VIH (vírus da imunodeficiência humana) e sida (síndrome de imunodeficiência adquirida). Quase 40 anos após o registo da primeira infecção por VIH em Portugal, ocorrida em 1983, a doença que foi encarada como uma das mais letais do século XX é, quando detectada a tempo, apenas mais uma doença crónica, facilmente controlada através de medicação anti-retroviral.

Apesar disso, muitos cidadãos de todo o mundo continuam a associar a doença às imagens difundidas nos anos 1980 e 90 em campanhas de prevenção que incluíam "corpos muito doentes, com manchas negras, pessoas moribundas em camas de hospital", recorda a fotógrafa Fidelia Avanzato, que cresceu durante esse período e para quem o impacto dessa comunicação foi, até há poucos anos, preponderante. "Todo esse imaginário ficou em nós, inconscientemente", afirma a autora da série de fotografias Body X Positive, em entrevista ao P3. O projecto, que consiste num conjunto de retratos de pessoas que vivem com o VIH, tem como objectivo "subverter o estigma doloroso que as pessoas VIH positivas carregam".

Fidelia, cuja assinatura fotográfica é Ida Fiele, fotografou, entre 2019 e 2022, "corpos lindos, saudáveis" de pessoas seropositivas. Para si, "essa foi a maior descoberta" que fez durante o desenvolvimento do projecto. "A ideia base é evidenciar a beleza pura que todo o corpo humano carrega e a visão positiva que ele é capaz de expressar". Acredita ser necessário normalizar a doença, e não moralizá-la. "[O VIH ou a sida] não têm de estar associados a pessoas com comportamentos sexuais atrevidos ou a um estilo de vida controverso", observa. "Ao percorrer as imagens, o observador não tem consciência da seropositividade das pessoas retratadas; assim, a dignidade, o orgulho e a potência dessas pessoas ganham protagonismo."

O estigma pode ser, em muitos casos, muito mais pesado do que a própria infecção. Graças à evolução da medicação, que consiste actualmente de um único comprimido de toma diária, a transmissão do vírus pode ser contida entre parceiros sexuais e mesmo entre mãe e filho durante a gravidez; além disso, pessoas com VIH podem ter, quando devidamente medicadas, uma esperança de vida semelhante à de toda a população. O preconceito, no entanto, que associa a infecção a comportamentos sexuais de risco, a toxicodependência e (também herança do século XX) à homossexualidade podem erguer verdadeiros obstáculos na vida quotidiana de quem convive com o vírus. 

Duas das pessoas retratadas partilharam com Fidelia experiências negativas, associadas ao estigma em que está envolto o vírus, em contexto clínico e hospitalar. "Desde médicos não nos querem atender, sermos servidos com talheres ou louça descartável em internamento, sermos mal tratados por não termos dito atempadamente que vivemos com VIH, etc...", exemplifica um dos retratados que escolheu permanecer anónimo.

No contexto dos relacionamentos amorosos, há também quem partilhe episódios de discriminação. "Uma amiga foi dizer a um rapaz com quem eu tinha namorado que eu tenho VIH, algo que ele já sabia. Mas ela convenceu-o de que o VIH era transmissível pelo beijo e pelo sexo oral, o que não é verdade. Esse rapaz ficou furioso e ameaçou-me." O desconhecimento das características da infecção, por parte da população, é, para este grupo, um obstáculo que as mantém reféns do estigma.

Para as mulheres, "o estigma é mais pesado", refere Fidelia. Isso está relacionado, avalia, com o "conservadorismo machista" que ainda vigora, em Portugal, que espera da mulher um comportamento sexual mais inibido. "Creio que seja mais difícil para elas encontrar um parceiro - e isso pode até estar relacionado com a possibilidade de gravidez e da possibilidade de formar ou não uma família", observa a fotógrafa. "O que não significa que, para eles, a situação seja fácil. Eles também sofrem discriminação."

De acordo com o relatório anual publicado há dias pela Direcção-Geral da Saúde e pelo Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge, em 2020 e 2021 foram notificados 1803 novos casos de infecção por VI; no entanto, tem-se registado uma tendência de redução do número de infecções ao longo da última década. Entre 2012 e 2021, houve uma diminuição de 44% no número de novos casos de infecção e de 66% nos novos casos de sida. A maioria dos novos casos de infecção foi detectada em homens com idades compreendidas entre os 25 e os 49 anos, predominantemente na Área Metropolitana de Lisboa e no Algarve.

"A testagem devia ser feita a mais pessoas", conclui Fidelia, que desenvolveu, no passado, outro trabalho sobre este tema. "As pessoas que desconhecem estar infectadas poderão transmitir o VIH sem saber."

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