Alessandro Michele deixou subitamente a Gucci depois de sete anos como um dos directores criativos mais mediáticos da indústria da moda. Já Daniel Lee abandonou a Bottega Veneta para pouco depois ser apontado para o lugar de Riccardo Tisci na Burberry. Tom Ford vai afastar-se da marca epónima, na sequência desta ter sido vendida à Estée Lauder e Raf Simons encerrou o projecto em nome próprio. A figura do director criativo parece mais rarefeita do que nunca, concordam os especialistas em conversa com o PÚBLICO, reflectindo sobre se esta será uma crise a instalar-se na moda ou apenas mais uma fase do acelerado sistema.
Mudar faz parte da “essência” do sector, começa por lembrar a jornalista e docente de história social da moda, Maria João Martins. Todos os anos, por volta da mesma altura, são anunciadas as mudanças nas casas de moda, quem entra e quem sai. E, apesar de haver sempre surpresas, desta vez estas não foram modestas. “Tem a ver com a moda ser sempre novidade. Estar sempre a criar acontecimentos novos”, analisa.
Há quem aguente mais tempo ─ como caso raro de Ian Griffiths há 35 anos na Max Mara ─ ou quem não se demore muito, quer por razões financeiras, quer por incompatibilidades criativas. Contudo, a história recente da moda lembra-nos casos mais mediáticos como o escândalo de John Galliano, demitido da Dior por proferir comentários racistas e anti-semitas. Quanto se sabe, não terá sido esse o caso de Alessandro Michele na Gucci, que poderá ter saído pela falta de novidade de que fala Maria João Martins.
Nas últimas décadas, as mudanças têm sido cada vez mais frequentes, reconhece a especialista. Estas alterações, acredita, são fruto da própria velocidade a que o mundo está a mudar: “A moda é, ao longo da história, um barómetro muito sensível à mudança. E, por vezes, antecipa mudanças civilizacionais.” Neste campo, sublinha, a pandemia e a crise das matérias-primas foram pedras no sapato das casas de luxo ─ ainda a recuperar.
Essa crise, analisa também o historiador de moda Paulo Morais-Alexandre, leva a que o marketing passe a pesar mais na balança dos factores que levam à escolha de um novo director criativo. “Isto já não tem a ver com a criação, tem meramente a ver com a ciência do marketing. Não tem nada a ver com a moda”, lamenta o professor da Escola Superior de Teatro e Cinema, na Amadora.
Morais-Alexandre observa que já Karl Lagerfeld e Vivienne Westwood eram figuras públicas e esta qualidade é uma mais-valia às casas de luxo ─ mas não o factor decisivo, salvaguarda. O docente elogia o trabalho do criador alemão que não desvirtuou o legado deixado por Gabrielle “Coco” Chanel, virtude que não aponta aos novos directores criativos. “Alguns destes jovens são poucos estruturados e pouco cultos”, critica, lançando farpas ao trabalho de Demna Gvasalia na Balenciaga.
É que a Balenciaga de hoje, criticam tanto Paulo Morais-Alexandre, como Maria João Martins, pouco tem a ver com a que o espanhol Cristóbal Balenciaga criou em 1937 com uma forte aposta num corte inovador feminino. “Onde é que a casa ainda existe e onde é que se transformou numa mera jogada de marketing?”, questiona o historiador. “Rompeu com tudo o que fazia o seu criador, uma alta-costura sofisticada. Agora fazem streetwear”, nota, por sua vez, a jornalista.
Com directores criativos que ignoram o passado em busca da venda fácil, pressionados pelos conglomerados de luxo, como a LVMH ou a Kering, as históricas casas de moda de autor perdem o seu rumo. E foi isso que Paulo Morais-Alexandre acredita ter acontecido com a Gucci, depois de se ter perdido a autonomia da casa. “Vão-se fazendo coisas como se o burguês ainda se espantasse”, ilustra.
Desvalorização do trabalho criativo
Estas jogadas de marketing que, por vezes, se tornam desastres ─ como a recente campanha sadomasoquista da Balenciaga ─, numa “sociedade dependente dos cliques”, “implica uma desvalorização do trabalho criativo”, lamenta Maria João Martins. Produzir colecções a um ritmo alucinante, não dá tempo para uma reflexão sobre o que está a ser criado e as novidades correm o risco de ter muito pouco de novo, explica.
“Estamos a atingir o ponto de saturação dessa velocidade. Ninguém tem capacidade para absorver mais, a começar pelos criativos”, avisa a professora, prevendo que as mudanças recentes se poderão dever a este cansaço. Os criadores cedem constantemente à pressão por terem “medo de ficar para trás”, sobretudo “no mundo do luxo”, nota a jornalista. Mas até quando?
O criador português Nuno Baltazar não crê ser sustentável esta situação durante muito mais tempo. “Tendo em conta a ascensão desmesurada de celebridades e figuras que não são designers de moda, em colaborações forçadas para promover a visibilidade das grandes marcas, qual é o papel do director criativo?”, provoca, em conversa com o PÚBLICO.
Baltazar lembra a parceria recente entre a socialite Kim Kardashian e a dupla Dolce & Gabbana para uma colecção e reforça: “A moda de autor não se consegue fazer sozinha? É como se o trabalho do criador não fosse suficiente.” O designer não desvaloriza a importância de os próprios criativos serem figuras públicas, mas reforça que o talento não pode ser “validado por isso”. “O mérito tem de ser posto à frente da exposição pública”, apela, culpando os conglomerados de luxo pela desvalorização da arte dos criadores.
Os três especialistas acreditam que haverá um momento que esta corrida para saber quem é o mais mediático terá de ter um fim. “Não é um ponto sem retorno. A pressão para a novidade vai ter de acabar. Vai haver uma altura em que vamos ter um regresso aos formatos mais seguros”, termina, com esperança, Maria João Martins. Nuno Baltazar só espera que não seja tarde demais: “A leviandade com que a assinatura é tratada hoje em dia… Meter tudo no mesmo saco tem consequências.”