Um beijo na cicatriz da cesariana
Soube que por causa daquele gesto a amaria para sempre, mesmo que um dia já não estivéssemos juntas e cada uma tivesse outras cicatrizes e outros lábios que as beijassem.
Foi a primeira e única pessoa que me beijou a cicatriz da cesariana. Um pequeno corte feito pelo cirurgião obstetra, que me prometeu na altura não deixar marca, e praticamente não se nota a pequena linha à superfície da pele. Trata-se um traço finíssimo acima da púbis, quase imperceptível; gosto muito dele. Cicatrizou bem e sem fazer quelóide.
Depois do nascimento do meu filho, e dada a minha separação, a cicatriz para ali ficou como uma marca esquecida de uma ferida ignorada. Desejei durante muitos meses que um dia viesse alguém e que a beijasse sem que o pedisse. Um desejo que reconhecia ser infantil mas que não podia deixar de sentir. Beijar aquela cicatriz seria apaziguar uma ferida interior só por mim perceptível e cuja dimensão eu própria desconhecia.
Na madrugada em que, depois de termos feito amor, decidiu beijar-me a cicatriz da cesariana, tive de cerrar os dentes com muita força para não soltar um pranto contido há anos e que, estava certa, me exporia de tal maneira, mostraria de tal forma a minha vulnerabilidade, que estou certa da sua fuga perante o meu estado de iminente colapso emocional. Foi um beijo leve, fugaz, na marca que anunciava discreta que era mãe, que por ali tinha trazido outra vida ao mundo. Soube que por causa daquele gesto a amaria para sempre, mesmo que um dia já não estivéssemos juntas e cada uma tivesse outras cicatrizes e outros lábios que as beijassem.
Disse-lhe algum tempo depois a importância daquele gesto. E muitas vezes se fez valer disso para me chantagear quando tentava terminar a relação. Fazia valer-se de todos os gestos bons que tinha tido para comigo para me dizer que não tinha o direito de dar e tirar valor às suas coisas. Era uma estratégia simples de me manter cativa nas minhas próprias promessas, independentemente das barbaridades que me fazia. Valia-se de um amor perene, revoltava-se com o meu passado, achando que com os homens eu tinha sido mais tolerante.
Não conseguia explicar que felizmente eu tinha mudado, que não estava disposta a aceitar faltas de respeito, mesmo de pessoas que me tinham mostrado amor e praticado gestos inesquecíveis, como o beijar a cicatriz da cesariana. Esse beijo que me deu saiu-me caro durante alguns anos. Fazia-me crer que eu não tinha o direito de terminar a relação com uma pessoa que tinha tido aquele gesto. Fazia-me sentir culpada por ter deixado de querer aquela pessoa que me fora tão íntima e que agora não desejava por perto.