O assédio no recreio que resiste nas escolas
São menos livres as raparigas que crescem com esta sensação de vulnerabilidade, como se lhes competisse aprender a viver, como escreveu um juiz português numa sentença, na “coutada do macho ibérico”
Ana,
Como cheguei cedo para uma sessão numa escola onde fui falar, sentei-me ao sol num canto do recreio. Gosto do posto de observador, em que olho sem ser vista, o que é especialmente fácil num recreio de um “liceu” — os adolescentes, e os pré-adolescentes, estão tão embrenhados uns nos outros, que um adulto não é captado pelo radar.
Gosto de adolescentes, e embora não tenha saudades nenhumas de ter aquela idade, reconheço que no meio de muita parvoíce existe ali uma energia que é contagiante.
Só que de repente comecei a assistir a “cenas” que quase, quase me levaram a intervir — Ana, os rapazes mais velhos (9º ano) continuam a passar pelas raparigas mais novas, de 12/13 anos, ou até mais pequenas, sem o menor pudor de mandar as bocas mais machistas imagináveis. E mesmo a intimidá-las com frases do estilo “Anda cá minha linda?”, “Mostra-me o teu…”, e coisas do género.
E reparo, com um nó na garganta, como elas se juntam mais numa atitude de defesa — há uma ou outra que os manda dar uma volta, mas a maioria evita olhar naquela direção, temendo que o confronto ainda atice mais o assédio. Perguntei depois a algumas porque não reagiam, mas responderam-me que têm medo e preferem ignorá-los.
Fiquei tão deprimida. O que é que queres? Por ingenuidade tinha metido na cabeça que com tanta conversa sobre os direitos das mulheres, com tudo o que se tem falado sobre o #MeToo, os rapazes teriam já interiorizado que este tipo de comportamento é inadmissível. E não me venham dizer, à laia de desculpa, que são as hormonas aos saltos, ou que os “rapazes são rapazes”, como se não conseguissem controlar os seus impulsos, porque estas movimentações de recreio têm consequências.
São menos livres as raparigas que crescem com esta sensação de vulnerabilidade, presas de um predador omnipresente, como se lhes competisse aprender a viver, como escreveu um juiz português numa sentença, na “coutada do macho ibérico”.
Sei perfeitamente que quando, em casa, olhamos para os nossos queridos filhos e eles parecem-nos incapazes deste tipo de comportamento, e que esta é a idade em que mesmo contra vontade se seguem os líderes do bando, mas deixo aqui um apelo:
Mães e avós, por favor, eduquem os vossos filhos e netos para respeitarem as raparigas.
Ana, tenho mais recados. Quando será que as escolas metem na cabeça que os recreios precisam da presença de adultos? Não de polícias, mas de adultos capazes de criar relações de confiança com os alunos, de agirem antes de o bullying sequer começar e, sim, de pôr na ordem estes rapazes!
Querida Mãe,
Escreve-me no dia certo porque ainda hoje ouvi várias queixas semelhantes. É tão fácil iludirmo-nos, pensando que tudo mudou só porque aparecem muitos posts no Instagram com o #empoweringwomen ou qualquer frase do género. Mas, no mundo real ainda temos muito que andar.
Não é uma questão de demonizar os miúdos que fazem estes comentários, estão a seguir padrões conhecidos e a tentar gerir o desconforto social que sentem, mas uma oportunidade de olharmos para nós próprios e para o exemplo que damos.
Há muitos homens, e de todas as classes sociais, que continuam a partilhar nas redes sociais, e em redes mais informais, fotografias ordinárias sobre mulheres, como continuam a fazer piadas e comentários de mau gosto entre si, por vezes, muitas vezes, com os filhos ao lado, dando a ideia aos miúdos que quanto mais rapidamente crescerem mais depressa poderão fazer parte do “clube”.
Mas, mãe, sem querer provocar-lhe cabelos brancos, surpreendentemente, tenho ouvido também relatos de rapazes assediados por grupos de raparigas. Rapazes mais sensíveis ou que se mostram mais reservados, e que são tratados exatamente da mesma maneira.
Gostava de perceber melhor este fenómeno, este bullying sexual. Perceber que comportamentos são normais para o desenvolvimento e descoberta uns dos outros, aqueles que refletem a cultura em que vivemos, e ainda os que são sintoma de um desconforto social grande. Vamos convidar alguém para falar connosco sobre isto? Vai um Birras de Mãe ao vivo?
O Birras de Mãe, uma avó/mãe (e também sogra) e uma mãe/filha, logo de quatro filhos, separadas pela quarentena, começaram a escrever-se diariamente, para falar dos medos, irritações, perplexidade, raivas, mal-entendidos, mas também da sensação de perfeita comunhão que — ocasionalmente! — as invade. E, passado o confinamento, perceberam que não queriam perder este canal de comunicação, na esperança de que quem as leia, mãe ou avó, sinta que é de si que falam.