Qual é a lógica de alguém com uma doença contagiosa ir para o emprego pegar às outras pessoas?

O que é triste é que pensei que, pelo menos, no fim desta confusão toda, teríamos ganho alguma consciência de como é absurdo pedirmos para as pessoas trabalharem doentes (seja com que doença for).

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@designer.sandraf

Ana, querida filha,

A covid ganhou-me. Desde que começamos estas Birras de Mãe, em Março de 2020, que a ando a fintá-la e, depois de tantos positivos — inclusive contigo que já apanhaste duas vezes —, estava sempre a apostar que só teria covid quando tê-la já não desse direito a isolamentos.

Lembras-te como dizia que se alguma vez o teste fosse positivo me iam mandar trabalhar? Pois, devo ser vidente, porque o decreto-lei que acabou com a obrigatoriedade de isolamento tem a data de 1 de Outubro. Exactamente, há pouco mais de 15 dias. E aqui da minha cama, cheia de febre e com vontade de arrancar os olhos e a cabeça, constato que passámos do histerismo geral à imprudência total. Da Saúde 24 obtive os seguintes esclarecimentos: Já não se fazem testes confirmatórios, a não ser com receita médica.

Quem tem um teste positivo deve ir à mesma trabalhar. “Assim contagio outras pessoas.” Deve usar máscara e, se a entidade patronal insistir em que veja um médico, liga de novo e é referenciado para o centro de saúde, onde é tomada uma decisão. “Mas, e se tiver sintomas?” Se os sintomas não forem impeditivos de trabalhar, deve ir trabalhar. Caso sinta que são impeditivos, informa-nos e é vista por um médico no seu centro de saúde.

Ana, parece-me absurdo: qual é a lógica de alguém com uma doença contagiosa, comprovada por um teste, ir para o emprego pegar às outras pessoas? Hoje sinto-me mesmo mal e embora não esteja a morrer, nem perto disso, não desejo estes sintomas a ninguém, muito menos a alguém frágil. Se o objectivo fosse criar imunidade de grupo, eventualmente faria sentido, mas o que toda a gente já sabe por experiência própria é que a covid-19, graças às suas criativas variantes, se apanha duas, três ou mais vezes, apesar das vacinas, e eu tenho três.

Por outro lado, para que é que vou engarrafar um centro de saúde com uma doença que há dois anos e meio nos ensinam a gerir em casa, recorrendo ao médico apenas perante certos sinais, que já conhecemos todos de cor e salteado? E que, esses sim, exigem ser avaliados. Eu sei que a enfermeira da Saúde 24 limita-se a seguir as directivas que recebe, e que o fim do Estado de Alerta impede-os de obrigar as pessoas a isolar, e acho bem, mas devíamos ter mantido a forma ágil de justificar estas “baixas” e, sobretudo, aconselhar com bom senso.

Espreitei as indicações do serviço nacional de saúde inglês, e não faço ideia se o sistema funciona bem ou mal, nem como são as “licenças” por doença, mas em termos de indicações pareceram-me muito mais inteligentes: Não impõem o isolamento por lei, mas dizem “Procure ficar em casa e evitar contacto com outras pessoas se tem um teste positivo à covid-19 ou sintomas de covid-19”. Mantenha-se cinco dias afastado de pessoas sem problemas de saúde, e dez dias longe das mais vulneráveis.

É o que vou fazer. Mas faço, porque posso.

Beijinhos.


Querida Mãe,

Nem sei o que lhe diga... Há muito tempo que deixei de tentar compreender a lógica por trás destas medidas e da comunicação das mesmas. O que é triste é que pensei que, pelo menos, no fim desta confusão toda, teríamos ganho alguma consciência de como é absurdo pedirmos para as pessoas trabalharem doentes (seja com que doença for). Pensei que podíamos abandonar este hábito louco de estarmos a enfrascar-nos em analgésicos para avançar como se o corpo não estivesse a gastar toda as suas energias a combater um vírus ou uma bactéria. E precisa de ajuda para o conseguir.

Ainda ontem comentava com outras mães como a escola também tem essa expectativa em relação aos miúdos — estiveram doentes, então deviam ter pedido aos colegas os TPC e feito tudo antes de voltarem! Os coitados cheios de febre, e ainda têm de fazer trabalhos? Perdeu tudo a cabeça. Enfim... Melhoras!! E se precisar de alguma coisa mande-me um SMS — e não uma carta — para eu chegar aí mais rápido!


O Birras de Mãe, uma avó/mãe (e também sogra) e uma mãe/filha, logo de quatro filhos, separadas pela quarentena, começaram a escrever-se diariamente, para falar dos medos, irritações, perplexidade, raivas, mal-entendidos, mas também da sensação de perfeita comunhão que — ocasionalmente! — as invade. E, passado o confinamento, perceberam que não queriam perder este canal de comunicação, na esperança de que quem as leia, mãe ou avó, sinta que é de si que falam.

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