Fotografia
A tristeza fabricada das carpideiras às portas da morte
Na Grécia, o ritual encenado pelas carpideiras é ancestral, remonta às tragédias gregas, e está hoje em vias de extinção.
O costume de chorar mortes a soldo remonta a tempos ancestrais e é comum a vários países do mundo. Em Portugal, as carpideiras já foram presença habitual nos funerais; hoje, avistá-las em acção é extremamente raro. Na Grécia também existem mulheres que choram a morte alheia como se de uma performance se tratasse, mas fazem mais do chorar: elas entoam cânticos que encontram raiz nos coros das ancestrais tragédias gregas. E nem sempre o fazem a troco de dinheiro; em muitos casos, são as próprias mulheres da família do falecido quem pratica esses rituais mortuários, mas poucas sabem já como fazê-lo.
A fotógrafa grega Ioanna Sakellaraki, autora da série The Truth is in the Soil, perdeu o pai há quatro anos, altura em que começou a interessar-se pelos rituais fúnebres tradicionais gregos, que caem em desuso a cada ano que passa. As mulheres que fotografou, quase todas com idade próxima dos 100 anos, não encontram agora quem assuma o seu lugar, o que faz prever o desaparecimento destes rituais que foram, até hoje, passados de geração em geração, por via oral, e que são, até hoje, pouco documentados.
“Estes lamentos são passados de mãe para filha”, explica Sakellaraki ao P3, em entrevista. “Eles são entoados por mulheres da casa e por vizinhas do falecido e, em alguns casos, por carpideiras profissionais. O ritual divide-se em três estágios: são entoados cânticos no local onde o corpo é velado, durante a procissão fúnebre e junto do jazigo. Estes lamentos são considerados um dever social na maioria das aldeias.”
Acontece que, nas envelhecidas aldeias da península de Mani, no sul da Grécia, a tradição está a desaparecer. No resto do país, esclarece Ioanna, ela já se extinguiu. “Ela sobrevive apenas na península de Mani e na região de Epirus, no norte da Grécia”, esclarece. “Foi importante, para mim, trabalhar no terreno, encontrar as mulheres [que ainda realizam estes rituais] e documentar a sua realidade nas aldeias remotas da península de Mani. No entanto, senti que realizar um trabalho sobre o luto requeria uma jornada através da memória e da perda de memória.” À medida que o projecto foi ganhando forma, as imagens que realizou levantaram questões sobre como “chorar os mortos pode ser uma experiência cultural”.
Foi assim que as imagens que produziu foram adquirindo um cunho mais abstracto. “Fui, gradualmente, experimentando pós-produzir os meus negativos, jogando com a inversão de luz e sombra, com contornos e cores, explorando o reconhecimento da silhueta [da mulher de véu].” Para Ioanna, o diálogo entre a linguagem documental e a não documental “acrescenta uma nova camada à que foi captada e que se reconhece como real, permite que a narrativa seja redireccionada para espaços imaginários como que criando um espaço onde a morte pode existir”.
O papel da globalização ameaça as tradições locais, padronizando as respostas ao luto. “Quero estimular o espectador a repensar a mortalidade”, escreve Ioanna no comunicado de imprensa dirigido pela Gost, que publicou em Abril o fotolivro do projecto, ao P3. O projecto esteve em exposição ao abrigo dos Encontros da Imagem, em Braga, até ao dia 30 de Outubro.