Nunca pude dizer “sim” ao casamento
Depois de uma relação de mais de uma década de namoro, resolveu pedir-me em casamento depois de me ter traído, e não era a primeira vez que me apunhalava à bruta pelas costas. Um pedido de casamento por compensação, deve ter sido por isso que se esforçou tanto no aparato.
Pediram-me duas vezes em casamento. A primeira aconteceu pouco depois de eu ter feito 20 anos. Ainda na faculdade, frequentava o 3.º ano em Letras na Clássica e namorava há quase quatro anos um recém-licenciado em Direito. Um jovem advogado que, além de bem-parecido — tinha uma cabeleira farta com caracóis quase negros, tez morena e escura, misterioso como só os homens latinos conseguem ser —, era bastante promissor profissionalmente, sabia que com ele teria uma boa vida.
Parecia o tipo perfeito, meigo e fiel, como mais tarde vim a perceber ser raro, e nunca me deu chatices. Mas a verdade é que se inicialmente fui apaixonada por aquele rapaz que conheci quando ainda estava no liceu, com os anos a coisa foi esmorecendo, esfriando, como se diz do outro lado do Atlântico, por essa altura, pouco antes do pedido de casamento, já me entediava estar algumas horas junto dele.
A conversa sobre o trabalho era chata, os livros que lia, exclusivamente ficção científica, quase sempre aborreciam-me, os restaurantes infestados de betos e de betas a que íamos desinteressavam-me, os filmes de que gostava não me entusiasmavam e aquilo que ele sonhava para mim estava longe de ser a mulher que eu desejava ser. Queria-me mãe dos filhos, respeitadora no trabalho e devassa na cama, longe das lides do teatro, que isso era “coisa inútil” - aliás era como via todas as artes, actividades inúteis, excepto a literatura, que insistia ser a minha vocação mesmo que nessa altura eu tivesse outros sonhos e os partilhasse consigo. Inútil era tentar conversar com ele, gostava mais de se ouvir do que de me escutar, acho que nunca percebeu aquilo que me movia. Apesar de tudo, sabia-o um homem bom.
Quando chegou o pedido de casamento, apanhou-me completamente desprevenida, sentia que a nossa relação me desinteressava e que estava a chegar ao fim, pensava que no fundo ele também devia sentir o mesmo. Eu tinha retomado algumas actividades que me faziam feliz, a dança e o teatro, e andava distante. Sentia-me bem comigo própria. Foi num fim-de-semana fora de Lisboa, em Sintra, num hotel bonito perto de Colares, com piscina e court de ténis - tínhamos começado a jogar ténis juntos nesse ano porque ele gostava; acho que gostava mais de dizer que jogava ténis do que de jogar -, num final de tarde que ele se ajoelhou junto à cama do quarto de hotel e passou-me para as mãos um aparelho portátil de mini-CD com uns auscultadores. Não estava à espera daquilo. Um pedido de casamento em diferido. Estava ali de joelhos à minha frente mas a sua voz encontrava-se gravada no mini-CD: “Princesa, amo-te muito. É chegada a altura de te perguntar se queres passar a tua vida junto a mim. Aceitas casar comigo?”
Eu detestava que me chamasse princesa, mas tive de dizer que sim. Que podia eu fazer? Não conseguia dar-lhe o desgosto assim de chapão, ele não merecia. Repito que se tratava de um homem bom. Alguns dias depois tentei devolver-lhe o anel, um lindo solitário em ouro branco, que não aceitou de volta, ainda o tenho guardado, não o consigo usar. Pedi-lhe desculpas por não aceitar casar com ele. Não entendeu o porquê da minha recusa, chorou, foi insistente. Até que fui obrigada a ser cruel, dizendo-lhe com sinceridade que não o amava verdadeiramente, que não nos imaginava juntos para toda a vida. Passei semanas a sentir-me mal, meses, e depois tive a certeza de ter feito a coisa certa quando conheci o cavalheiro que se lhe seguiu. O meu outro pedido de casamento. Uma coisa feita “à séria”, ao estilo dos filmes de Hollywood.
Depois de uma relação de mais de uma década de namoro, resolveu pedir-me em casamento depois de me ter traído, e não era a primeira vez que me apunhalava à bruta pelas costas. Um pedido de casamento por compensação, deve ter sido por isso que se esforçou tanto no aparato. Entro em casa, o nosso apartamento numa zona chique de Lisboa, e começo a ouvir Bach, as Variações Golberg, vindo da sala. Para lá me dirijo e deparo-me com um violoncelista junto à janela que dava para o jardim, num dos cantos da sala. Do outro lado, junto à parede com livros, o meu namorado infiel com um ramo de flores na mão, a sorrir para mim, como se fosse suposto eu achar graça àquela palhaçada. Quando terminou a música que ouvi sem que as lágrimas parassem de me cair, não de alegria mas de desgosto, o meu namorado infiel, sem sequer se ajoelhar, abriu uma caixa joalheira de uma marca caríssima, uma jóia Dior, o anel que ele sabia que eu queria, da colecção chamada Oui, idealizada para pedidos de casamento.
Li “oui" no anel e respondi “non", mas em português. O homem que eu mais tinha amado pedia-me em casamento, como se fosse um remendo numa roupa velha. O soar da palavra “não” foi um sino de paróquia anunciando o funeral, a tesourada fina e definitiva numa peça ruim e podre.