Animais suspensos por fios ao coração de outros

Em vez de praticar jogging junto ao rio, caminhava uns bons quatro quilómetros da sua casa até à porta das urgências do hospital e por ali ficava a observar o corrupio de gente e a forma como os acompanhantes, familiares, amigos ou conhecidos dos enfermos se comportavam perante a mudança inesperada que é, quase sempre, uma ida às urgências.

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Como um viaduto a que só alguns têm acesso, um túnel de passagem restrita, uma pista de aterragem invisível aos descrentes, assim se encontrava, estacada à porta das urgências do mais movimentado hospital da cidade, olhando a azáfama do entra-e-sai de pacientes e macas e técnicos de saúde absortos.

Costumava fazer aquele passeio todos os dias ao final da tarde, depois de um dia de trabalho monótono entre telefonemas e ecrãs e assuntos inúteis. Em vez de praticar jogging junto ao rio, caminhava uns bons quatro quilómetros da sua casa até à porta das urgências do hospital e por ali ficava a observar o corrupio de gente e a forma como os acompanhantes, familiares, amigos ou conhecidos dos enfermos se comportavam perante a mudança inesperada que é, quase sempre, uma ida às urgências.

Por vezes entrava mesmo na sala de espera, sem nenhum controlo por parte do segurança, e ia até à máquina comprar um café por 1,20 euros. Uma bica que lhe saía mais cara do que na maior parte dos cafés da cidade mas que lhe garantia o privilégio de uma vista, não da cidade ou de um jardim, por exemplo, mas de pessoas preocupadas, tristes, stressadas ou simplesmente aborrecidas.

Tinha a noção de que ser espectadora da vida dos outros naquele preciso momento preenchia de certa forma o vazio da sua vida, a falta de elos familiares e amorosos sólidos que lhe permitissem ser ela própria, um dia, a acompanhada ou acompanhante de alguém numa ida àquele mesmo edifício. Por isso por ali ficava, dentro ou fora do edifício, regozijando-se com o devido respeito com as desgraças dos outros.

Naquela tarde ficou particularmente impressionada com o desarranjo emocional de um filho adulto, um homem com cerca de 40 anos, que julgando ouvir a mãe gritar do lado de dentro da sala de tratamentos, tratou de irromper aos berros pelo corredor, impedindo os profissionais de saúde de prosseguirem com o seu trabalho. Foi escorraçado por um enfermeiro corpulento, recambiado para a sala de espera onde permaneceu perturbado e a chorar como um menino que tivesse sido afastado da mãe pela professora e arrastado para dentro da sala de aula no dia em que se estreava na escola.

A parte boa da sua vida era esta espécie de recortes que ali recolhia, na sala de espera do hospital; curtíssimas metragens com personagens reais que lhe davam a dimensão daquilo que deveria ser um ser humano — um animal suspenso por fios aos corações de outros —, que ia colando num álbum imaginário, tornando-se um pilar fundamental da sua actividade diária física e emocional, uma caminhada que lhe alimentava os dias e à qual chamava de via de fé.

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