Até ao fim

Na realidade, To the End acaba por funcionar melhor como documento sobre a polarização exaltada que a sociedade americana atravessa, do que como chamada à ação climática.

O Doclisboa exibiu na quarta-feira na Culturgest o documentário To the End, seguido de um debate com dois políticos e uma ativista, moderado por Francisco Ferreira, da associação Zero. O documentário obedece a uma estética gloom and doom (as coisas estão mal e ainda vão ficar piores), hoje prevalecente na comunicação do combate às alterações climáticas. A banda sonora é ora sombria, ora heroica. As imagens são de catástrofe. Pelo meio, quatro mulheres, entre as quais a congressista americana Alexandria Ocasio-Cortez, são filmadas no interior das suas batalhas pelo clima.

Formalmente, o documentário recorre a uma linguagem estafada para abordar um tema cuja gravidade pede um tom novo, a encontrar. Desde já, nas bandas sonoras, talvez possamos prescindir de música sombria ad nauseam que pode funcionar em thrillers e em filmes de terror, mas não aqui. To the End, por outro lado, cumpre com um modelo narrativo também exaurido: os bons e os maus; vitórias e derrotas; activistas vs capitalist pigs; heroínas que vão salvar o planeta.

Face à complexidade em que vivemos, é grande o aborrecimento que este maniqueísmo básico provoca. Aos combatentes pelo clima, em particular àqueles que estão por detrás deste objecto audiovisual, falta recordar que combater o sistema passa por combater parte da sua gramática padrão, reinventando-a. Ao investirem nas emoções em detrimento da reflexão, estão a usar a retórica propagandística do inimigo, porque essa é a estratégia do greenwash, do whitewash e de outras lavagens. Nesta tessitura, feita apenas de emoções, depois do fade out de fim, fica-se com menos do que o tema merece. Na realidade, To the End acaba por funcionar melhor como documento sobre a polarização exaltada que a sociedade americana atravessa do que como chamada à ação climática. Mas é genuína a bravura das quatro protagonistas, e fez bem o Doclisboa em o exibir, enquadrado por um debate nacional.

Foto
Alexandria Ocasio-Cortez numa cena do documentário To the End, realizado por Rachel Lears DR

Quando na Culturgest se abre o período de perguntas e respostas, os jovens colocam questões pertinentes a que os dois políticos respondem como podem. Uma pergunta em particular faz recear que o auditório esteja rendido ao tom do documentário que acabou de ser projetado. “Como conseguem dormir à noite?’’, pergunta-se aos políticos. Estes, há poucos minutos acusados de não estarem a fazer absolutamente nada, estão atónitos, porque se está a fazer muita coisa, dizem. Mas não o suficiente, “mother fuckers”, diriam alguns dos presentes, caso estivéssemos nos EUA. Não é lá que estamos e, talvez para o lembrar, Francisco Ferreira introduz na conversa o Pacto Ecológico Europeu e a portuguesa Lei de Bases do Ambiente, identificando-os como dois extraordinários documentos, que são.

Mas associações como a Zero e a Climáximo alertam para o desacerto crónico entre letra da lei e realidade executada. Uma das dificuldades reside no tipo de conversas, dolorosas, complexas, que vai ser preciso ter para que esse desacerto se estreite. A título de exemplo, dizem os jovens espectadores aos políticos, é preciso falar da observância dos pactos e leis de companhias como a Galp, ou das empresas com capital chinês, REN e EDP, que dominam o setor energético em Portugal. Sem que estas conversas aconteçam, sem que a Europa saiba ouvir com toda a atenção os que lutam hoje ferozmente pelo seu futuro, nenhum pacto será capaz de evitar cenários difíceis, confirmando as piores expectativas dos mais novos — e To the End é também sobre isso mesmo. Vivemos uma crise de herança que seria muito feio não superar.

Sugerir correcção
Ler 3 comentários