E por fim, no Portugal Fashion, o Bolhão com Alexandra Moura e à noite no museu com os Manéis
O último dia da 51.ª edição do evento de moda do Porto ficou marcado pelas apresentações de Pedro Pedro, Hugo Costa, Alexandra Moura, Miguel Vieira, Diogo Miranda, Huarte e Alves/Gonçalves. O PF volta (se os fundos permitirem) em Março.
Quatro dias, mais de 30 desfiles e o Porto de lés a lés em dez localizações ─ foi assim a 51.ª edição do Portugal Fashion. A leveza de Pedro Pedro e de Hugo Costa na Oficina do Ferro; Alexandra Moura e Miguel Vieira entre os turistas no Mercado do Bolhão; e Diogo Miranda, Huarte e Alves/Gonçalves no meio da arte no Museu Nacional Soares dos Reis. Assim foi o último dia do certame, que levou a moda aos locais mais inesperados, numa visita guiada pela cidade.
Nestas salas da Oficina do Ferro, agora repletas de grafítis e em decadência, outrora produziram-se carros. O ambiental industrial contrasta com a delicadeza do croché de Pedro Pedro, que regressou em Março ao PF, depois de três anos de ausência, e trouxe uma nova visão, com menos romantização do que é a moda de autor que lembra continuar a “ser difícil”.
Mas Pedro Pedro não se deixa aprisionar pela melancolia artística e trouxe “as boas energias” ao desfile deste sábado, que teve como ponto de partida, à semelhança da última estação, a música. “Desta vez é muito mais leve. Não é rave, é quase um festival. Quis ir buscar o flower power do Woodstock, mas de uma maneira mais contemporânea”, explica ao PÚBLICO. Volta a apresentar apenas em homem, apesar de considerar o papel do género cada vez menos relevante.
Esse imaginário reflectiu-se no trabalho manual em que o criador continua a apostar, desta feita com um ar quase vintage. Os crochés que dominam a proposta ora parecem quase saídos da casa da avó, ora se mostram aparentemente inacabados com uma malha aberta. É de destacar o trabalho com com os materais, como por exemplo, os veludos que quase parecem gangas pelo desgaste feito a laser.
Também há gangas. Para o designer, que se dedica à marca em horáro pós-laboral, é importante equilibrar as colecções entre as peças “mais especiais”, de autor, a pensar no espectáculo que é um desfile, e as mais comerciais, que serão mais fáceis de vender. Todavia, a maioria do trabalho “não é uma coisa de fábrica”, é, sim, “de artesãos”. “É o momento das coisas fantasiosas. De sermos nós e procurar menos coisas [que sejam] pesadas e difíceis”, termina. Em breve, é inaugurada a loja online com a colecção apresentada no último PF.
Hugo Costa encerrou a manhã na Oficina do Ferro, com um desfile que marca o amadurecer da marca e um ponto de viragem no que toca ao processo criativo. “Em vez de procurarmos um tema específico para a colecção, limita-nos a sentir. O nosso foco era visitar o arquivo, mas de uma forma mais disruptiva”, explica, fazendo eco de uma visão que vários criadores têm expressado.
A impulsividade de que fala foi buscá-la ao início do seu percurso, mas com a maturidade criativa que foi conquistando em 12 anos de carreira ─ iniciada no concurso Bloom do PF, e que, agora, coordena. Às referências do streetwear “de sempre”, nesta colecção é de destacar a maior presença no vestuário clássico, com os blazers a tornarem-se definitivamente uma das assinaturas do designer.
Há novos materiais e elementos que Hugo Costa diz ter ido recuperar ao “imaginário mais feminino”, com as organzas e os tules, que surgem em diversas silhuetas, como fatos completos, calções e até chapéus. “É difícil encontrarmos um clássico que não comprometa as pessoas e que seja cool ao mesmo tempo. Fazermos fatos em organza foi brincar com isto”, nota. No fundo, o quer é que se perceba que aquela é a sua marca: “Isto é Hugo Costa, mas não está igual. Isso é fixe.”
Alexandra Moura: de fora do planeta para o Bolhão
Na escadaria do renovado Mercado do Bolhão, os curiosos juntam-se para tentar perceber o que ali se passa. No piso inferior, os comerciantes vendem frutas e legumes, enquanto nos corredores acima, as modelos cruzam a passerelle improvisada. “Esta magia deste céu cinzento com a luz especial que está. Encomendei bem a cenografia”, brinca Alexandra Moura.
Foi o desejo de “uma nova Terra” que impulsionou a proposta da criadora, que tem um ponto de partida bem vincado: “Surgiu precisamente a 24 de Fevereiro, em Milão, no dia do meu desfile.” Foi o dia em que rebentou a guerra na Ucrânia. “Esse dia marcou-me muito, especialmente porque estávamos num sítio incrível, e, de repente noutra parte do mundo tudo mudou”, recorda, emocionada.
Perante tamanha frustração, Alexandra Moura respondeu como melhor sabe: “O papel da moda também é dizer alguma coisa. No dia em que deixar de passar uma mensagem é porque a minha missão na moda acabou.” Na narrativa desta estação Extramundanus, a designer imaginou que “vêm seres de fora do planeta, como se estivessem nos bastidores a trabalhar para nos ajudar”. São como uma equipa, compara.
Essa equipa serviu de mote a grande parte dos elementos visuais da colecção, “quase um sentimento de uniforme”, das equipas de Fórmula 1 que estão nas boxes a ajudar quem está a correr, continua a comparar. Há mesmo uniformes, em algodão, que mimetizam também a NASA, através de detalhes como as canetas espaciais para fazer anotações e os porta-chaves. A presença dos logótipos é transversal, dá vida a estampados nas peças icónicas da marca e em fatos em ganga.
As gangas continuam a ser um dos destaques ─ a criadora dá primazia às fibras naturais. A manipulação têxtil é também de sublinhar no trabalho da designer lisboeta, que desenvolve novos materiais como uma espécie de látex com alto relevo, que traz romantismo à proposta. Na construção das peças, os vestidos curtos com botões que permitem criar peças sempre diferentes são um dos favoritos de Alexandra Moura.
As silhuetas exageradas que marcam a sua assinatura continuam presentes, por exemplo na alfaiataria, mas desta feita com menos força. “Houve aqui uma clara vontade de contornar o corpo e marcar a figura.” Os vestidos em algodão, um dos clássicos da marca, surgem mais ajustados e até há minissaias em ganga.
Mas quem são estes seres que Alexandra Moura imaginou que viriam salvar o planeta? “Tem a ver com a minha maneia de ver a vida e o mundo. Acharmos que somos só nós é prepotente”, termina.
E se o streetwear de Alexandra Moura surpreendeu a multidão que se juntou no mercado, as cores da colecção de Miguel Vieira espelhavam os tons do Bolhão. Depois de, no Inverno, ter voltado à sua zona de conforto, ao preto e branco, o criador são-joanense imaginou o “jardim perfeito” com flores e muita cor ─ verde, lilás, azul, e não só. “Neste momento as pessoas estão um bocadinho deprimidas, aborrecidas e precisam de alegria”, acredita.
Não faltam os fatos de assinatura de Miguel Vieira, cujos “moldes estão mais do que testados”, nem os padrões novos estampados, a usar e abusar dos monogramas. O calçado, a marroquinaria e a joalharia estão também em destaque. A maioria dos materiais são orgânicos, com uma preocupação de se fazerem notar pela sustentabilidade, já que MiguelVieira foi um dos conselheiros do Governo para o tema.
O clássico de Miranda e os anos 90 de Huarte
Ao final do dia, a moda muda-se para o Museu Nacional Soares dos Reis ─ a derradeira localização do PF ─ e nem a chuva persistente alterou os planos. A mística no ar foi ao encontro da visão romântica de Diogo Miranda, que, nesta proposta, quis “trabalhar os clássicos do guarda-roupa da mulher”, em cores pouco além do tradicional.
Aos 15 anos de carreira, o criador já decidiu o que define a sua visão criativa e é isso que quer explorar. “Não gosto muito de calças”, confessa. As saias e vestidos chegam das décadas 50 a 70 do século passado, que considera as mais elegantes, quase idílicas. Mais do que a elegância, Miranda quis provar que consegue criar para vários tipos de corpos, com a ajuda dos materiais como o crepe e o plissado, que, assegura, vestem diversos tipos de corpo. Como novidade nas silhuetas, traz os vestidos em tubo e as capas tipo casaco, sem esquecer os drapeados.
Diogo Miranda chegou ao PF através do então programa Aliança dedicado a jovens talentos. Huarte venceu no início de 2021 uma menção honrosa no Bloom e, desde então, integra o calendário do evento. Em Destination Unknown (destino desconhecido, em tradução livre), celebra a liberdade de escolha, recuperando o imaginário dos anos 90, quando nasceu. “É o momento em que estamos fartos da nossa rotina. Podemos pegar na primeira coisa que encontramos em casa e ir para o aeroporto”, imagina.
“Nunca fiz isso, mas adorava fazer”, diz, em declaração de interesses. Esse viajar sem certeza é uma alusão ao mundo e à vida dos jovens “sem destino fixo”. “Não sabemos como vai ser o futuro, o trabalho, como vai acabar o dia. Acho piada a essa incerteza”, reflecte o criador espanhol radicado no Porto. A impulsividade, de largar tudo e ir, manifesta-se na roupa utilitária, com muitos bolsos e materiais confortáveis ─ todos de produção portuguesa.
As gangas são transversais à proposta ─ ou não fosse Victor Huarte designer na Salsa ─ com a rigidez material a contrastar com a delicadeza dos crochés e dos cortes a laser. O único padrão da colecção é quase um recuperar as camisas de estilo havaiano, mas reinventado com uma flor “menos óbvia”. Os acessórios, a maioria em croché, ajudam a completar a sua narrativa.
Apesar de, inicialmente, a marca ser dirigida ao público masculino, Huarte tem apresentado cada vez mais coordenados para mulher, de forma a desconstruir os preconceitos que acredita continuarem associados ao papel do sexo feminino. “Continuamos a ter uma versão menos romantizada da mulher. Alguns designers querem fazer uma mulher muito feminina e elegante. Quero trazer uma visão mais fresca”, promete.
É graças ao trabalho na equipa de design da Salsa, que Huarte tem aprendido a gerir a marca em nome próprio e, sobretudo, a perceber o lado mais comercial, essencial para o crescimento de qualquer projecto. “Cada vez mais, temos de surpreender e fazer coisas novas. Mas o nosso caminho de roupa é muito comercial”, conclui.
E, por fim, eis o Manéis
A abordagem comercial de Huarte choca com o trabalho de experimentação e atelier dos consagrados Alves/Gonçalves, responsáveis, como é tradição, pelo encerramento do PF. No jardim do museu, ao final da noite, os convidados enrolam-se em mantas para se protegerem do frio nortenho. “Já não tenho paciência para história e mensagens ─ há roupa para as pessoas verem”, defende Manuel Gonçalves. Essa roupa deve passar uma mensagem forte a outro nível que não um tema específico, mas sobretudo visualmente, com um espectáculo que o criador considera essencial.
Com quase 40 anos de carreira, os Manéis (como são conhecidos no meio) sabem o que querem e quais as suas assinaturas. “Quero roupa que reflicta a ambivalência das peças de vestuário, tanto uma mulher pode pôr, como um homem. É indiferente”, exemplifica, provando que a dupla de criadores já tinha estas preocupações antes de o sector começar a utilizar este tema como bandeira.
Os dois gostam de pôr as mãos na massa, através da manipulação têxtil, que nem sempre é o que parece. Como novidade, aplicaram desenhos indianos como um todo sobre as peças ou mimetizaram o aspecto molhado nos tecidos. Alves e Gonçalves voltaram, ainda que temporariamente a Lisboa, ao Bairro Alto, na década de 90, quando utilizavam T-shirts cortadas às tiras. Então eram cortadas à tesoura, agora o mesmo efeito é conseguido com laser.
As gangas, as malhas e os acolchoados são de destacar nas peças mais confortáveis, com detalhes como a construção de moldes de casacos e blazers com peças soltas de modelagem de calças. As calças surpreendem pela funcionalidade, com bolsas por fora, e sítios inovadores para colocar os cintos que as apertam, explica Manuel Gonçalves, enquanto demonstra ao PÚBLICO nas suas próprias calças.
Além da ausência de tema, a dupla aboliu o conceito de estação por achar que não se enquadra num projecto internacional como o seu, para vender para países longínquos como o Brasil ou a China. “Há zonas muito geladas e outras mais amenas. A mesma colecção tem de ter Inverno e Verão”, justifica. Para os dias mais frios, os mantos que se transformam em vestido encerraram o desfile deste sábado, em clima de festa ao som da música dos anos 90.
Inicialmente esta edição do PF era marcada pela incerteza, depois de, no domingo passado, a organização ter informado que podia ser o último evento, por falta de fundos europeus. Na quarta-feira, designers e organização suspiraram de alívio, depois da reunião com o ministro da Economia, que prometeu novas candidaturas até ao final do ano. Vê-se fumo branco ─ a semana de moda da Invicta deverá voltar em Março.