A natureza em Afonso Lopes Vieira
Os poemas são antigos, mas o assunto é de sempre. A relação das crianças (e dos outros) com os animais e a natureza e o respeito e afecto que se lhes devem.
Longe vai a primeira edição de Animais Nossos Amigos. Data de 1911 e foi ilustrada pelo arquitecto Raul Lino. Mas o olhar de Afonso Lopes Vieira (1887-1946) sobre os animais denotava já então uma sensibilidade de que só recentemente muito se faz eco. A maior parte das vezes, hoje, apenas em relação aos animais domésticos. Os outros parecem contar menos.
Escolheu o poeta e ficcionista homenagear nestes poemas o cão, o gato, o burro, os bois, as abelhas, o sapo, os passarinhos e até o lobo, com a ajuda de São Francisco de Assis. Olha-os não apenas do ponto de vista do nosso usufruto, o dos humanos, mas também explora a sua própria natureza, nas alegrias e dores.
Escutemos parte do texto dedicado aos bois, sem esquecer o contexto agrícola à época: “(…) Vede os bois a puxar, pelas estradas, aquelas pesadíssimas carradas…/ O carro deles, com o esforço, freme, e o carro geme, longamente geme… (…) E à noite, pela estrada tão sozinha, o carro geme, geme, e lá caminha…/ E parece, p’la noite envolta em treva, que é o carro a chorar por quem o leva (…)”
Sobre o mesmo animal na sua labuta em torno incessante da nora, diz-nos do som desta que chora. Também a água: “(…) E, parece, p’la tarde erma que expira, que é a água a chorar por quem a tira (…)”
Afonso Lopes Vieira nasceu em Leiria, formou-se em Direito na Universidade de Coimbra e foi redactor da Câmara dos Deputados. Estreou-se na literatura em 1898, com a edição de Para Quê, e segundo a editora tornou-se “umas das mais eclécticas figuras da cultura portuguesa da primeira metade do século XX”.
Estética contemporânea para discurso antigo
Para Dina Sachse, o facto de estar em presença de um conjunto de poemas de outros tempos tornou o processo de ilustração “complexo”, como disse ao PÚBLICO por e-mail: “Existe mais de um século a separar a visão literária do autor da minha visão artística.”
No entanto, a designer de comunicação, de Vila Nova de Gaia, encontrou o seu caminho: “Arrisquei quebrar com a convencionalidade introduzindo a irreverência de uma linguagem contemporânea e de uma visão estética minimalista, que faz contrastar o carácter orgânico da escrita com um traço geométrico e estilizado dos elementos naturais.”
O resultado põe-nos perante uma obra também visualmente poética, que transmite paz e serenidade e explora múltiplos pormenores da paisagem e dos diferentes animais.
A ilustradora diz ainda: “Há na obra um tom de positividade, de gratidão do sujeito poético para com os animais e o seu contributo e papel relevantes na vida do homem [da humanidade]. Trata-se, portanto, de uma trama sensível e bem tecida que eu passei para o meu trabalho de ilustração.”
A confirmar o que diz Dina Sachse, atente-se no que é escrito no final do livro: “Aqui agora acabou O Livro dos Animais: quem o leu e quem gostou amigo deles ficou/ destes e também dos mais: do cão de bom coração; do gato todo caseiro; do burrinho caminheiro; dos grandes bois da lavoira; das abelhas que o sol doira; dos sapos que amam as flores; dos passarinhos cantores; do lobo que tinha fome, e é manso porque já come.”
Um resumo e um livro que traduzem a contemplação e veneração dos animais e da natureza, sem excluir que fazemos parte dela, mas dando-nos um papel secundário.
Como bem descreve a ilustradora, que teve de mergulhar demorada e atentamente nos poemas: “Há que ler, respirar e tentar absorver a beleza deste texto. Afonso Lopes Vieira, um poeta ligado à Renascença Portuguesa que segue, de certa forma, os trilhos desenhados por Almeida Garrett, mostra nesta obra uma grande sensibilidade pela literatura infantil e pelos temas ligados à natureza, sendo que a alusão a S. Francisco de Assis, que remata este livro, não surge por acaso, já que esta figura tão sobejamente conhecida partilha com o autor este amor pela natureza e pela poesia.”
Ainda sobre as escolhas de representação do que é dito e subentendido no texto, Dina Sachse explica: “Os elementos naturais fluidos harmonizam com a geometrização dos animais. A figuração humana surge sem rosto e sem relevância, já que são os animais os grandes protagonistas.” Um belo livro para dar a ler e a ver a crianças de qualquer tempo.