Nem tudo o que é conflito é bullying
Os conflitos entre as crianças sempre existiram, mas atualmente parecem encontrar menor resiliência nos filhos e despertar maior preocupação nos pais.
Usa-se e abusa-se da palavra bullying. Quando os filhos têm um conflito com os colegas da escola, há pais que se apressam a diagnosticar uma situação de bullying, colocando naturalmente os filhos no papel de vítimas e os colegas no de bullies. Mas esse diagnóstico, na maior parte das vezes, felizmente, não corresponde à realidade.
Na maioria das situações, estamos a falar dos conflitos que habitualmente surgem entre as crianças e que, não obstante as zangas e as lágrimas, desempenham um papel importante para o seu crescimento a nível emocional e social. Neste sentido, pode até dizer-se que a existência de conflitos tem um lado positivo, na medida que representa uma oportunidade para aprender a resolver esses diferendos. A existência de conflitos funciona como matéria-prima para a aprendizagem da relação com os outros que, obviamente, nem sempre é fácil. Que implica necessariamente empatia e cedências mútuas. Mas também, e não menos importante, assertividade e defesa dos seus próprios pontos de vista.
Os conflitos entre as crianças sempre existiram, mas atualmente parecem encontrar menor resiliência nos filhos e despertar maior preocupação nos pais. A maior impreparação das crianças para lidarem com os conflitos pode ser explicada pela menor exposição aos mesmos, que resulta do facto de as famílias, de um modo geral, estarem mais pequenas e de as crianças terem deixado de brincar na rua. Assim, as interações com os pares na infância viram-se reduzidas, diminuindo as hipóteses de aprendizagem precoce das relações humanas, que passa a ser realizada essencialmente na escola.
Na atualidade, é no momento em que as crianças ingressam na escola que, muitas vezes, têm a possibilidade de interagir com meninas e meninos da sua idade, aprendendo a exigente arte da negociação e da partilha. Mais centradas no eu e menos disponíveis para ceder, as crianças entram mais facilmente em conflito com os amigos, dispondo, em contrapartida, de menos ferramentas para os resolver. Menos experientes e impreparadas para lidar com a gestão de conflitos, revelam maior dificuldade em gerir as emoções associadas à interação com os pares e menor resiliência para lidar com as contrariedades.
Por seu lado, os pais estão mais atentos a eventuais sinais de mal-estar por parte das crianças, prontos a intervir quando os filhos evidenciam dificuldades na relação interpares e chegam a casa com queixas dos colegas. Esta atenção na sua origem é positiva, na medida em que permite identificar eventuais situações de bullying e impedir que as mesmas se perpetuem no tempo. É que o facto de a maior parte das querelas entre crianças não ultrapassarem o nível dos conflitos com os pares, não significa que, em alguns casos, assumam contornos mais preocupantes que, obviamente, exigem uma intervenção célere.
No entanto, se for excessiva, esta preocupação por parte dos pais pode revelar-se negativa, se estes quiserem a todo o custo evitar que os filhos tenham conflitos na escola e assumirem as suas dores, adotando uma visão unilateral da situação e tomando incondicionalmente o partido dos filhos. É que, na maioria das vezes, há duas visões para a mesma situação e a história que chegou a casa poderá eventualmente não estar completa – não porque a criança esteja propositadamente a faltar à verdade, mas porque está a privilegiar o seu ponto de vista, inevitavelmente subjetivo. Nestas circunstâncias, é fundamental que os pais conversem com os professores para tentarem perceber o que se passa e procurarem compreender a situação na sua globalidade. Perante um alerta dos pais, os professores necessitam, muitas vezes, de reunir mais informação, através da observação direta, do diálogo com os intervenientes e das informações das auxiliares.
Para que os conflitos entre as crianças da mesma idade tenham um potencial de aprendizagem ao nível das relações interpares, é importante que os mais novos tenham a possibilidade de começar por tentar resolver as suas desavenças com autonomia. Tal não significa que o adulto não esteja necessariamente atento, pronto a intervir se constatar que as crianças não estão a ser capazes de chegar a um consenso, necessitando de mediação na resolução do conflito. Esta mediação implica sempre ouvir atentamente as duas partes e envolvê-las nas sugestões para resolver a situação.
Contudo, se o conflito for recorrente, se ocorrer entre crianças de idades diferentes, se envolver agressão física ou houver desigualdade entre as partes, com diversas crianças de um lado e apenas uma do outro, o adulto deverá intervir prontamente, para impedir injustiças, abuso de força ou agressões físicas ou psicológicas. Também é importante que as crianças saibam que podem recorrer a um adulto de referência, sempre que necessitarem de ajuda para resolver uma situação.
Se a intervenção do adulto for baseada apenas na autoridade e na imposição de sanções, aquele conflito em concreto até pode ficar resolvido, mas hipoteca-se a aprendizagem de resolução dos conflitos subsequentes. A aprendizagem de gestão de conflitos implica a aprendizagem do diálogo entre as crianças, para que aquelas que se sentiram magoadas tenham oportunidade de falar sobre os acontecimentos e os sentimentos que estes causaram, enquanto os colegas visados desenvolvem a exigente arte da escuta e a gramática da empatia, aprendendo a colocar-se no lugar do outro. Os colegas não são espetadores passivos desta troca de palavras; pelo contrário, pelo facto de não estarem tão diretamente envolvidos na situação, podem ser mais objetivos numa proposta de solução que ponha termo ao diferendo.
A aprendizagem da gestão de conflitos não é fácil, nem tão pouco rápida, e pode ter avanços e retrocessos. Trata-se, sem dúvida de um longo processo, tão longo e tão complexo que dura a vida inteira. Mas é um privilégio quando é iniciado desde cedo, nos bancos da escola, numa idade em que se está a tempo de realizar uma aprendizagem profunda, com potencial transformador. Esta aprendizagem profunda pode desempenhar um papel determinante na prevenção do bullying, ao desenvolver a empatia pelo outro, a assertividade na definição dos nossos próprios limites, a assunção da responsabilidade perante as nossas ações e a capacidade de refletir antes de agir, essencial para fazer de nós seres humanos melhores.
A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990