Fotografia
A avó está sozinha. “Num casamento de uma vida, há sempre alguém que parte primeiro”
"O meu avô morreu, mas a parte mais difícil foi ver a minha avó chorar a sua ausência." Catarina Pinho documentou, ao longo de dois meses, as mudanças que ocorreram na vida da avó. "O companheiro de uma vida é agora um silêncio quando a noite cai e o dia nasce, é um lençol negro na cabeça que afirma a dor perante todos os que passam, é uma sala cheia de gatos que esperam que esse alguém [que partiu] regresse a casa."
Acordaram juntos e juntos se deitaram ao longo de mais de 50 anos. Construíram, a quatro mãos, um universo só seu. "Até que a morte nos separe, dizem, e assim é", pode ler-se na sinopse do projecto O Resto dos Nossos Dias, de Catarina Pinho. No início deste ano, o avô partiu. "Morreu de velhice", conta Catarina ao P3, em entrevista. Ele tinha 92 anos, ela menos dez. "Num casamento de uma vida, há uma inevitabilidade esquecida: há sempre alguém que parte primeiro."
"Acho que a minha avó não estava à espera, foi um choque", continua a fotógrafa que reside em Viseu. A morte do avô abalou toda a família, refere, mas foi a avó quem ficou, de repente, sozinha na casa onde ambos moravam. "A parte mais difícil foi ver a minha avó chorar a ausência dele. Eu vi a sua vida a mudar. Vi-a a acordar de manhã e não ter ninguém." A avó é uma pessoa saudável, activa, que "ainda trabalha muito no campo", na aldeia rural do distrito de Viseu onde reside. "Gosta de ter as suas coisas, de cultivar a sua horta, de cuidar dos animais. Nesse aspecto, a rotina pouco mudou. Se o avô cá estivesse, quando ela chegasse a casa estariam a jantar em conjunto. Agora não."
Agora, restam à avó "as molduras de uma vida longa em conjunto", numa casa "cheia de objectos que lembram sempre que alguém partiu". "O companheiro de uma vida é agora um silêncio quando a noite cai e o dia nasce, é um lençol negro na cabeça que afirma a dor perante todos os que passam, é uma sala cheia de gatos que esperam que alguém regresse a casa." E, para a avó, resta "uma sensação de solidão que durará o resto dos nossos dias".
À semelhança da maioria das pessoas que experiencia o luto, em Portugal, a avó de Catarina não teve apoio psicológico profissional para lidar com a dor e com a nova realidade. "Na minha família, as pessoas convivem com a ideia de não obter ajuda psicológica. Se calhar, até precisariam de ajuda profissional, mas as questões relacionadas com a saúde mental ainda são tabu para muitas famílias." A avó, à semelhança da maioria, conta apenas com o apoio familiar e da comunidade. "Nós tentamos acompanhar, saber sempre como ela está, se precisa de alguma coisa. A família, que vive muito próxima, e os vizinhos vão dando apoio. Além disso, creio que, mesmo que incentivássemos a avó a ter ajuda profissional, ela recusaria."
Já passaram meses desde a morte do avô. "No início, ela caiu numa fase mais negativa. De momento, já aceitou e está a tentar viver o dia-a-dia da forma mais normal possível." Quando Catarina começou a fotografar, no início do Verão, o pior já tinha passado. "Não fotografei com a intenção de realizar um projecto sobre o tema. Faz parte de mim fotografar para observar, para enfrentar." A fotógrafa de 25 anos recorreu à fotografia também para lidar com o próprio luto. "Quando enfrentamos, conseguimos processar."
Para os mais idosos, que convivem com a perda sucessiva de pessoas da sua geração — amigos, irmãos, cônjuges — o impacto da morte será, previsivelmente, maior. "A morte é inevitável e dela pouco se fala, sobretudo do impacto que ela tem na vida daqueles que ficam." A azáfama do trabalho, das relações, dos planos para o futuro, mantém a vida dos mais jovens em movimento. "A nossa vida segue, há um futuro pela frente; a dela já não."