Viver melhor, ser mais feliz
É preciso falar do cancro e das doenças mais assustadoras. Quem as vive precisa que não haja tabus, antes diálogo aberto e franco sobre os caminhos a seguir.
A ausência de novidades e respetiva atualização da caminhada que estou a realizar para ligar o Instituto Português de Oncologia (IPO) de Lisboa ao de Coimbra e do Porto, e transmitir uma mensagem de esperança a todos os que se encontram a lidar com a cancro, explica-se em duas palavras: isolamento voluntário.
De tal forma levei a coisa a sério que há duas noites escolhi para pernoitar um moinho isolado em Alvorge — sem Internet e sem televisão; a televisão até estava lá, mas o jogo da noite não me interessava e não a liguei —, freguesia do município de Ansião, onde terminei uma das etapas da caminhada, realizada exclusivamente nos Caminhos de Santiago.
Estes caminhos oferecem, sabe-o muito bem quem já os percorreu, momentos de isolamento profundo na natureza, sendo possível caminhar quilómetros a fio sem ver vivalma enquanto se fica pasmado a observar paisagens belíssimas.
O Caminho não é para todos. Fica o aviso aos que já se imaginam a tirar fotografias para o Instagram e afins, nos apaixonantes túneis de árvores ou nos caminhos pedregosos no meio da montanha.
O Caminho tem subidas capazes de tirar o fôlego a um maratonista queniano e descidas que exigem alguma destreza, agilidade e capacidade de travagem. Descobri-o em dado momento num abrandamento mal calculado que me amolou um joelho. Ainda assim, porque o motivo é sobejamente merecedor de qualquer sacrifício, subi o Quebra-Costas de Coimbra para chegar ao IPO de Coimbra na data marcada: 5 de outubro de 2022.
Por ser feriado, só oficializámos o encontro no dia 6 de manhã, altura em que duas mãos-cheias de boa gente me acolheram e deram conta do entusiasmo com que encaram a sua missão de todos os dias. Subir o Quebra-Costas com um joelho ao peito é rigorosamente nada comparado com o que os profissionais de saúde do IPO de Coimbra fazem, todos os dias, no acolhimento e tratamento das pessoas que procuram aquele hospital em busca de tratamento, conforto e esperança.
Chegar ao IPO de Coimbra e daí partir rumo ao Porto foi o segundo objetivo concretizado da “300 km de Esperança”. O primeiro foi mesmo a partida, a concretização da ideia no primeiro passo físico a partir do IPO de Lisboa.
O que se tem seguido, nomeadamente todas as manifestações de apoio, são o efeito secundário de uma onda de esperança que começou na capital e que alimentam o meu sonho — e tenho noção da magnitude do que sonho —, se estenda por todo o país. É preciso falar do cancro e das doenças mais assustadoras. Quem as vive precisa que não haja tabus, antes diálogo aberto e franco sobre os caminhos a seguir. Uma sociedade esclarecida e com menos dúvidas perturbadoras sofre menos, vive melhor, é mais feliz.
Já a caminho da Curia, onde terminei a nona etapa desta caminhada, dei por mim sem água nos cantis. Encontrava-me a cerca de 15 quilómetros da Mealhada, para se localizarem. Por vezes atravesso pequenas povoações sem ver ninguém. Às vezes nem mesmo um cão, e se tenho encontrado muitos e bastante antipáticos pelo caminho!
Quase a sair de uma dessas povoações, reparo num senhor que regava a horta. Aproximei-me do portão. Reparei que não estava sozinho. Havia um cão, manso por sinal, uma senhora na casa dos 65 anos e ainda a mãe dessa senhora.
– Bom dia! Não me enche o cantil, por favor?
– Claro que sim – respondeu a senhora mais jovem.
– Ó homem, até lhe dou um garrafão de cinco litros. Comprei um há pouco, por acaso – disse a mãe.
– Não quer antes uma garrafa das grandes? – acrescentou a senhora.
– Não, obrigado, já vou bastante pesado.
– Então o que tem aí no joelho? – perguntou a mãe, ao ver o cão aproximar-se do portão para tentar lamber-me o joelho entrapado com umas fitas cinestésicas.
– Nada de mais, é uma dorzita.
– Olhe, diz que é bom deixar os cães lamber as feridas, diz que cura…
– Não sei não, acho que é capaz de ser mentira – arrisco.
– Já soube aí de umas coisas que se curaram com a saliva do cão – insistiu a mãe.
– Ó senhora, deixe lá o homem com isso – grita o genro, ainda com a mangueira na mão.
– Aqui está, bem fresquinha. Então para onde vai? Santiago? – pergunta a senhora mais nova, enquanto me entregava a garrafa.
Expliquei que não e ao que andava.
– Mas tem comido?
– Sim.
– Não quer uma laranja ou duas? Você come? E dormir, dorme ou faz tudo seguido?
– Não quero a laranja, obrigado, vou almoçar daqui a pouco. E durmo sim, então não havia de dormir?
– Às vezes vão assim com essa coisa na cabeça, meio amalucados, e não dormem nem nada! – dispara a mãe.
A filha e o genro repreenderam-na. Eu ri bastante.
E voltei a rir diversas vezes ao logo do caminho ao lembrar-me do comentário tão acertado da mãe.
Agora, enquanto escrevo, questiono-me sobre o que diria a senhora se me tivesse visto, um par de quilómetros antes, a ensaiar voz de tenor enquanto atravessava um túnel. Não imaginam o eco.
O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990