E da covid nasceu Assintomática, uma orquestra “de fala universal com sotaque argentino”

O bandoneonista Martín Sued formou durante a pandemia um sexteto com músicos de vários países a que chamou Orquestra Assintomática. E já gravaram um disco: Igual Estamos Acá.

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Martín Sued & Orquestra Assintomática: das sombras covid-19 à música

Em 2019 lançou o seu primeiro disco a solo, Iralidad, depois de trabalhar na Argentina com vários colectivos que foi formando (Tatadios, Chiche Trío ou o duo Sued-Nikitoff) e a par de parcerias com músicos de vários países. Agora, podemos ouvi-lo num projecto que nasceu da pandemia de covid-19 e a que chamou Martín Sued & Orquestra Assintomática. Estreou-o em Lisboa, ainda no final do ano em que a pandemia obrigou a prolongados confinamentos, 2020, e gravou em 2022 um disco onde, além dele próprio (bandoneonista, compositor e arranjador) participam cinco músicos de cinco países: Portugal, Brasil, Itália, Argentina e Ucrânia.

Nascido em Buenos Aires, em 1983, e actualmente a residir em Portugal, Martín Sued explica ao PÚBLICO como tudo começou: “Foi já no final de 2020, quando houve aquela abertura, quando o confinamento começou a ser menos rígido e começaram a ser permitidas reuniões, que aproveitei para convocar estes músicos para criar um espaço de experimentação onde pudéssemos tocar a música que eu tinha composto durante o primeiro período da pandemia, que eu passei no Algarve.” Foi, segundo ele, “um encontro que teve mais a ver com a necessidade de partilhar coisas através da música não por necessidade profissional e sim por uma necessidade humana, depois de todo aquele período difícil por que passámos.”

O nome da orquestra e as vestimentas dos músicos (aqueles fatos brancos, com máscaras e toucas, que nos habituámos a ver durante a pandemia, mas salpicados de muitas cores) são também devidos à covid e aos confinamentos. “O nome da orquestra surgiu como uma piada”, recorda Martín Sued. “Tínhamos passado tanto tempo fechados em casa, que começámos a encontrar-nos com frequência. Até essa altura, nenhum de nós tinha tido covid (depois todos tivemos) e alguém disse, numa noite, que ninguém apanhava covid porque éramos uma orquestra assintomática. Ficou como nome para os ensaios e depois ficou para sempre.”

Quanto ao vestuário, foi uma apropriação criativa de algo que tanto nos assombrou. “O vestuário tem que ver com isso: transformar um momento difícil em algo maior, usar como material para a criação algo que está por perto. Muitas vezes, a beleza é uma coisa ruim transformada numa coisa melhor. Foi isso que nos levou a pintar a roupa branca da covid.”

O álbum, Igual estamos Acá, é composto por oito temas: Hormiga, Agosto, La Montaña de Beacon, Membrillo – O que a Helena sonhou ontem, Filas, Migra, Insistir e, a fechar, o tema-título, Igual estamos acá. “Algumas são adaptações de músicas que eu já havia feito para outras formações e também tinha tocado a solo. Mas a maior parte delas são músicas feitas a pensar concretamente nesta formação, que podia ser, pelos instrumentos que a compõem, um sexteto de tango. Só que a música que tocamos não é música de tango e sim uma música que muitas vezes tem a respiração e certas características de interpretação da música argentina.”

Isso tem também que ver com a própria formação da orquestra, onde com Martín Sued, no bandoneón, composição e arranjos, estão o também argentino Ariel Rodriguez (piano e sintetizadores), o brasileiro Pedro Loch (guitarra eléctrica), a portuguesa Sandra Martins (violoncelo), o italiano Francesco Valente (contrabaixo) e o ucraniano Denys Stetsenko (violino). “Podemos comparar o timbre de uma formação com o sotaque de uma pessoa”, diz Martín. “E esta é uma música de fala universal com sotaque argentino, com músicos de diversos sítios do mundo.” A preponderância, à vez, do piano, cordas ou bandoneón, tornando cada instrumento num “líder” provisório do sexteto, deriva também desta mistura ecléctica: “A ideia é que a protagonista seja a orquestra. Então, as cores, segundo a curva expressiva da música, permitem mostrar que cada instrumento pode desempenhar qualquer função. Como num colectivo humano: uma pessoa engraçado também pode ser muito séria.”

Criada na pandemia, a orquestra acabou por ter pela frente um outro drama, o da invasão da Ucrânia pelas tropas de Putin, vivida de perto pelo facto de um dos músicos ser ucraniano, como diz Martín. “Quando a música do disco já estava composta, e começámos uma residência artística em Março deste ano, para trabalhar em detalhe a música antes de a gravar, começou o conflito na Ucrânia. Nessa altura, tivemos também a oportunidade de conhecer músicos afegãos refugiados em Portugal. E conviver com as histórias de vida deles, histórias recentes e muito trágicas. Mas ao mesmo tempo que partilhávamos essa dor, partilhávamos também a música, tocando com eles. Estávamos a conviver com a dor, mas também a transformar a dor.”

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A capa do disco

O título do disco pode ser lido, assim, como uma declaração de resistência. “Igual estamos acá é uma expressão argentina, que tem que ver com isso”, acrescenta Martín Sued. “É o nome do disco e também da última música que escrevi para ele. Tinha vontade de ter uma música mais leve, com menos informação, e foi uma música que escrevi rapidamente, que escrevi mal a senti. Com uma melodia simples e uma harmonia simples. Tocamo-la como uma espécie de hino. Como que a dizer a quem nos ouve: ainda estamos cá, apesar de tudo continuamos aqui.”

A primeira apresentação do grupo foi na Pharmácia Musical, em Lisboa, em 17 de Dezembro de 2020, seguindo-se, em 2021, concertos em espaços como a BOTA (Base Organizada da Toca das Artes), no dia 2 de Junho ou a Casa da América Latina, no dia 13 de Julho, num concerto comemorativo dos 100 anos de Astor Piazzolla. Agora estão a apresentar este seu trabalho em várias sessões, com marcação prévia, através das redes sociais do grupo, pelo menos duas vezes por mês. Esta segunda-feira, 3 de Outubro, deverá ocorrer outra.

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