Cuida do teu rasto
Sentei-me no chão e refleti por momentos no rasto que deixamos em todos os caminhos que percorremos, em tudo o que tocamos, em todas as pessoas com quem nos cruzamos.
O mundo é barulhento. O que faz com que o silêncio seja cada vez mais um luxo. Saí do Cartaxo pela Nacional 3 às 7h30 da manhã, hora de ponta. Quem não conhece esta cidade do interior – eu conhecia mal – é provável que diga algo do género: “Sim, sim, estou mesmo a ver a hora de ponta no Cartaxo, meia dúzia de carros.” Eu pensava o mesmo. Desenganem-se. Ali como em quase todos as cidades portuguesas, as pessoas saem de casa todas à mesma hora, ou pelo menos no mesmo intervalo entre as sete e as nove da manhã.
Vai daí, o meu primeiro par de quilómetros foi percorrido com uma banda sonora de vrum vrum. Adapto-me com facilidade à maioria dos ambientes. Mas confesso que privilegio locais assim mais para o sossegado e silencioso. Aliás, a pandemia e o respetivo confinamento a isso convidaram ainda mais: dias inteiros sem ligar a televisão, a ler e a escrever em silêncio ou com música calma e baixinha. “Que seca de homem!”, dirão, com alguma razão reconheço, os espíritos mais acelerados, barulhentos e festivos. Feitios, amigos, feitios.
Voltando à Nacional 3 e ao barulho, ao fim de dois quilómetros, vi-me sem berma para caminhar e comecei à procura de alternativas. Uma estrada de terra batida suscitou-me curiosidade. Acreditando que se tratava da alternativa à Nacional 3 que tinha estudado no dia anterior, avancei sem pensar, mas ao fim de meia centena de metros, achei por bem abrir o mapa. Desculpem a sugestão poética. Na verdade, foi ao GPS do telemóvel que recorri.
E não é que era mesmo ali o desvio para Santarém, a caminho de Póvoa de Santarém, onde tinha previsto terminar a jornada? Segui, feliz e contente, deliciado com o cheiro a estrume (é feio dizer bosta, não é?), autêntico perfume ambientador quando comparado com fumo de carros e camiões. O desvio, que incluía várias estradas alcatroadas e quase sem trânsito, durou cerca de dez quilómetros. Parei em Póvoa da Isenta para tomar café num supermercado. Bebi o café, escolhi uma banana grande e aguardei a minha vez para pagar.
– Dez euros e não levo nada… – disse uma senhora vestida de preto dos pés à cabeça e cabelo branco como a farinha que levava no saco.
– Não leva nada?! Então leva aí um saco cheio! Já viu a quantidade de notas de dez euros que estão aí? E se for ao talho ainda é pior – respondeu o dono do supermercado, rapaz dos seus 60 anos, apontando para as caixas da fruta.
A senhora olhou para o saco e franziu o sobrolho.
– Isto não está para comer, Dona Júlia, não coma. E ainda vai ficar pior. Só o açúcar já aumentou 30 cêntimos.
– Eu quero lá saber do açúcar, não faço bolos, homem! – respondeu a senhora, virando as costas.
– Olhe, faça como este rapaz – disse o dono do supermercado, apontando para mim –, anda a carregar aquela mala de todo o tamanho às costas e só leva uma banana para comer.
Sorri, paguei e saí.
“É verdade”, pensei enquanto me afastava do estabelecimento, “esta mochila é enorme”. Recordei, então, os largos minutos em que havia estado agachado, ainda no troço de terra arenosa, a observar uma enorme caracoleta a atravessar a estrada. A caracoleta avançava lentamente (nenhuma novidade nisso), deixando um vincado rasto atrás de si. Sentei-me no chão e refleti por momentos no rasto que deixamos em todos os caminhos que percorremos, em tudo o que tocamos, em todas as pessoas com quem nos cruzamos.
Já no recato do quarto de hotel, com mais 25 quilómetros nas pernas, busquei nas minhas notas as meditações de Marco Aurélio, imperador romano desde o ano de 161 até à sua morte, no ano 180: “Que uso estou eu agora a dar aos poderes da minha alma? Autoexamina-te sobre este ponto a cada passo, e pergunta, ‘Como é que ela se dá com aquela parte de mim a que os homens chamam a parte-mestra? Que alma é que habita o meu corpo neste momento? A de uma criança, a de um rapaz, a de uma mulher, a de um tirano, a de um boi mudo, ou a de um animal selvagem?’ Não vivas como se tivesses mil anos à tua frente. O destino está ali ao virar da esquina; torna-te bom enquanto a vida e o poder ainda te pertencem.”
Cuida do teu rasto.
O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990