Um diamante bruto que o espírito de entreajuda contribui para lapidar
Távora-Varosa não é só espumante e tem mais do que um embaixador. A região vitivinícola do Norte está a atrair novos agentes económicos. “Parceria” é a palavra que por lá mais se ouve.
“Isto era tudo olival e vinha no tempo do meu avô, que fazia essencialmente vinhos tranquilos, 75, 80 mil litros. Quando os meus pais começaram a pensar na reforma, reconvertemos esta vinha, em 2003. Começámos por vender à Murganheira, mas sabe como são estas coisas do vinho: primeiro estranha-se, depois entranha-se”. Paulo Jesus tem outra actividade, longe do vinho e de Armamar, mas esta já lhe ocupa praticamente todos os fins-de-semana. Ele e o pai tocam a Casa de Vinhago para a frente.
São dois dos rostos de uma das regiões vitivinícolas mais pequenas do país – com 2.200 hectares de vinha e uma produção anual de 75 hectolitros de vinho – e apesar disso muito dinâmica. Dezasseis agentes económicos, seis a fazer espumante, numa região onde dois operadores representam 95 por cento da produção mas todos os anos surgem novos players – só no último ano, entraram três novos produtores –, alguns com projectos de enoturismo.
Na região demarcada em 1989 (então como Encostas da Nave e Varosa), há duas grandes zonas, Távora e Varosa, diferentes no clima, no solo e até nas pessoas. E uma zona in between, onde se sente mais a influência do Douro.
Os ares do rio Douro
É aí que encontramos a Casa de Vinhago, no lugar da Lapinha, uma dúzia de habitantes, em São Cosmado, Armamar (550 metros de altitude). “Começámos com este hectare e no total já temos dez hectares. Plantámos vinha em mais dois sítios, onde tinham ardido pinheiros. Vinificamos tudo”, conta Júlio Pedrosa, que foi ministro da Educação no segundo governo de António Guterres.
Durante a pandemia, o antigo governante e ex-reitor da Universidade de Aveiro instalou-se com a esposa na quinta que havia sido do sogro. Em solos pobres, graníticos e arenosos (ali, porque noutras vinhas já são mais “barrentos”, de argila de xisto), faz vinhos tranquilos, Casa de Vinhago e Poesis, entre eles “um Sauvignon Blanc do Távora-Varosa”, com enologia de Paulo Teixeira. E tem agora um espumante. “Feito com o apoio do enólogo Bruno Seabra [Abibes e Caves da Montanha] e com a preciosa colaboração da Murganheira, onde fizemos o dégorgement”, atalha Paulo Jesus.
Engenheiro químico como o pai, Paulo diz ter ali “um escape”, mas “um escape sério” – produzem 25 mil garrafas por ano, vendem tudo –, e um plano também para a sua reforma.
Também em São Cosmado, na Quinta da Seara (700 metros de altitude), o agrónomo Marcos Hehn explora nove hectares de vinha na quinta que herdou da família, tem uma pequena loja e sala de provas e intenções de ali fazer nascer um alojamento local. Produz um vinho tranquilo – apostou no Riesling, que vinifica assim desde 2015 – e quatro espumantes. A casta que plantou mais é o Cerceal, para ele uma variedade “espectacular para fazer vinhos base e vinhos tranquilos de guarda”. Mais do que a Malvasia Fina, também muto presente na região, diz. Conta já 17 vindimas e este ano produzirá 30 mil garrafas. “Estou a crescer.”
Em Pinheiros, Tabuaço, para lá da ponte romana de Granja do Tedo e das suas casinhas, encavalitadas umas nas outras, fica a Quinta da Moita (600 metros de altitude). José Fernandes e Maria do Rosário Silva, emigrados na Suíça, gerem o negócio do vinho e do azeite e o agro-turismo (a partir de 85 euros/quarto; 105 e 160 euros, o T1 e o T2, respectivamente) inaugurado este ano à distância. Contam com a ajuda das pessoas da aldeia, Carrazedo, que “acolheram bem o projecto”.
“Plantámos a vinha em 2014 [1,8 hectares] e começámos a fazer vinho em 2019: engarrafámos o primeiro vinho, um branco, com a Indicação Geográfica Terras de Cister”, conta José, que em Cabo Verde fazia grogue. Em 2022, a quinta, que também tem azeite e mel, já fará “um rosé de Cabernet Sauvignon e um pouco de Touriga Nacional”, aponta o enólogo consultor Ângelo Ribeiro.
“Toda a quinta é biológica. As ovelhas ajudam-nos a cortar as ervas. Ficam na vinha até Março. E este tanque reserva a água que vem da mina”, conta Maria do Rosário, natural de Carcavelos mas que ouvia falar de Carrazedo por ser a terra do padrinho. O plano é continuarem lá (na Suíça) e cá durante algum tempo, mas ao investir na região o casal investe também num futuro em Portugal.
Varosa, o lado mais urbano da região
É em Ucanha, Tarouca, perto do rio Varosa, que fica o porta-estandarte da região: a Murganheira (entre 500 e 700 metros de altitude). Escola e parceiro comercial de quase todos os que encontrámos nesta reportagem, a empresa fundada pelo industrial têxtil Acácio Laranjo, em 1947, é também o ganha-pão de muitos viticultores do vale do Varosa, que uma vez falida a cooperativa local se viraram para as caves.
Propriedade de Orlando Lourenço desde final dos anos 1980, recebe hoje uvas de 100 lavradores e vinifica “mais de um milhão de quilos” de uva por ano, explica Herlander Lourenço, filho e um dos rostos das caves hoje.
De vinha própria, tem 13 hectares. Ficam mesmo por cima da cave original, escavada no de granito azul. “Se a cave estiver atestada, leva 2 milhões de garrafas. Aqui colocamos o que achamos que são os nossos melhores produtos. Com carica ainda. É aqui que se dá a segunda fermentação, em garrafa, que origina o gás natural [do espumante]. Os vinhos mais velhos aqui guardados serão de 1998, por aí. Estamos a 70 metros de profundidade”, conta Herlander.
Para além desta cave com temperatura e humidade constantes, os visitantes ficam a saber o que são e como estão hoje automatizados os processos de remuage e dégorgement – no método champanhês ou tradicional, as garrafas de espumante eram rodadas lentamente num cavalete, por um operador, para que os sedimentos originados pela segunda fermentação se encaminhassem para o gargalo, para depois serem eliminados no dégorgement. Passam por ali 25 mil grupos todos os anos, que também contribuem para as vendas dos vinhos feitos hoje por Marta Lourenço, esposa de Herlander – a Murganheira vende um milhão de garrafas por ano!
Perto, vale a pena visitar Ucanha e a sua ponte fortificada – e comer milhos na Tasquinha do Matias –, assim como o mosteiro de São João de Tarouca, património único ligado à Ordem de Cister.
Na Várzea de Abrunhais, Lamego, a Casa dos Viscondes da Várzea (550 metros de altitude) é uma propriedade da família de José Pedro Cirne. Tem 200 hectares, 67 de vinha – e uma das maiores manchas de Pinot Noir na região, a par da Murganheira –, muitas macieiras – outra cultura que caracteriza a região –, um hotel rural com 40 quartos (a partir de 120 euros/quarto nesta altura; e desde 150 euros no Verão) e eventos. “A única forma de manter este património era abrir isto ao público”, partilha, sobre a casa que “foi quartel-general do general Silveira durante as Invasões Francesas” e de onde avistamos a “linha imaginária que separa Távora-Varosa do Douro”. Em nome próprio, vinifica três tranquilos, um branco, um tinto e um rosé, também em parceria com as caves, 30 mil garrafas no total.
Na Casa de Santo António de Britiande, a energia de Ana Maria Pinto Ribeiro contagia os visitantes, muitos estrangeiros, que ali chegam, numa parceria com os barcos da Viking. É ela quem orienta as provas de vinho (um branco, feito na Casa de Vinhago, e um espumante), ora no edifício onde noutros tempos se armazenavam maçãs, ora numa casa do século XVI com turismo de habitação (180 euros/noite, mínimo duas noites), que encontramos atravessando 3,5 hectares de floresta.
“No verão, temos as provas no jardim. No Inverno, fazemos as provas à lareira”, conta a esposa de António Carlos Pinto Ribeiro, o primeiro presidente da Comissão Vitivinícola Regional de Távora-Varosa, falecido este ano. Os vinhos são vendidos só ali e no Turismo. As uvas são do Souto, Penedono (750 metros de altitude), onde Ana Maria tem 14 hectares de vinha e 10 de olival. “É uma coisa pequena, mas auto-sustentada.”
Távora e as influências mais beirãs
Metade da área de vinha da região fica no lado voltado à Beira Interior, onde a Cooperativa Agrícola do Távora, com adega em Moimenta da Beira, recebe uvas de 1100 associados (entre os 550 e os 850 metros de altitude).
O negócio – dois milhões de garrafas cheias este ano, com a expectativa de vender 1,6 milhões –, que muitos conhecerão mais pelos espumantes Terras do Demo, está “a crescer 28 por cento” e em 2023 a cooperativa quer candidatar-se a fundos comunitários para ampliar a cave, partilha João Silva, “professor de Educação Física com queda para o vinho” e presidente da cooperativa desde 2003.
São sete as referências de espumante, “tudo espumante bruto” e com Denominação de Origem. E há depois vinhos tranquilos, certificados como IG Terras de Cister. O primeiro espumante que surgiu é da vindima de 2003 e chegou ao mercado em 2005, nos 50 anos da cooperativa. Antes, esta entidade já vendia vinho para espumante. “A região era distinguida e procurada pelos grandes compradores e preparadores de espumantes da Bairrada”, conta o enólogo Jaime Brojo.
“Somos a única região vitivinícola nacional que só tem espumante DO. Foi, de resto, a primeira DO a ser criada para espumante. E queremos afirmar a região pela excelência. Não queremos mais nada. Nunca vamos ter massificação”, refere o actual presidente da CVR de Távora-Varosa, José Pereira.
Carlos e David Caixas são vizinhos da cooperativa. Numa vinha com 3 hectares (575 metros de altitude) e vista para a albufeira da barragem do Vilar, no Távora, fazem vinhos tintos, “só tintos”, e “para guardar”. Os vinhos Tempo Largo.
Como muitos na aldeia da Faia, Sernancelhe, Carlos emigrou para Bordéus na década de 1970. No seu caso para estudar, Psicologia. “O meu pai já trabalhava lá, na vinha, para o André Lurton, do Château La Louvière [Pessac-Léognan], e eu trabalhei com ele. Acabei por ser obrigado a provar vinho”, brinca. David também estudou Línguas na famosa região vitivinícola francesa. E trabalha agora com o pai num projecto que certificou a primeira colheita certificada em 2013 e que é ainda muito artesanal e conta com o apoio do enólogo João Paulo Gaspar (Vercoope).
Atravessando o Távora, junto à praia fluvial inaugurada este ano e aos passadiços, e seguindo pela estrada que vai dar à barragem, a Quinta das Cepas fica em Fonte Arcada, na fronteira com Ferreirim, a maior freguesia do concelho de Sernancelhe, com 300 hectares de vinha.
A 750 metros de altitude, os irmãos Jorge e Jacinto Almeida têm 17 hectares de vinha, de onde sai o vinho Decisão (tinto e branco, 18 mil garrafas no total) e as uvas que entregam à cooperativa. “O nosso pai fazia vinho, que vendia a granel, depois apareceu a cooperativa. O primeiro vinho Quinta das Cepas surgiu há 18 anos, em 2004, de um ano muito difícil”, conta Jorge. A marca “Decisão só nasceu em 2009, com o [enólogo] Paulo Nunes”, acrescenta o sobrinho, Nuno.
Last but not least, Luís Leocádio, enólogo e produtor, dos vinhos Titan of Douro, virou-se em 2018 para Távora-Varosa. As suas vinhas na região duriense são as últimas antes da fronteira com este micro-território. “Sempre olhámos para o outro lado, para o lado de cá do Távora.” O branco com que se estreia “é um espumante sem espumantizar”, “um espumante sem bolhas”, descreve, para “mostrar esse lado mais mineral e champanhês” da região.
Esse Titan of Távora-Varosa Daemon 2018 (Cerceal, Malvasia Fina e Gouveio, uvas de vinhas em redor da albufeira da barragem do Vilar, a 700 metros de altitude, vinificadas parte na adega de Marcos Hehn e parte na Quinta das Cepas) teve tanta aceitação que na edição de 2020 passou de 2600 a 9000 garrafas. Há já um segundo vinho tranquilo, que chegará ao mercado no início de Novembro (“Vai ser o nosso topo de gama do Távora-Varosa. O viticultor, em Sarzeda, quase a 900 metros de altitude, diz que as vinhas terão uns 140 anos.”), e planos para fazer um espumante.
Disso dependerá uma solução de vinificação e engarrafamento que lhe permita ter maior autonomia. Luís Leocádio procurava um espaço para ter adega na região, mas adiará esse investimento à luz de uma das novidades da certificação. A CVR de Távora-Varosa passou a permitir que os produtores engarrafem fora da região os seus vinhos.
Parcerias. E espírito de entreajuda. Numa região que é um diamante por lapidar.