A armadilha da felicidade
Não acredito é que o caminho para a felicidade possa ser prescrito em dez passos. Mais: tenho dúvidas de que o caminho para a felicidade seja aquele que tem a felicidade como objetivo final.
O meu primeiro contacto com a psicologia positiva não foi positivo. Foi no âmbito da minha licenciatura*, numa aula de psicologia, cuja professora era uma acérrima defensora da positividade como caminho para a felicidade. Segundo a professora, o grande problema da comunicação entre pais e filhos era a forma como se perguntava aos filhos como lhes tinha corrido o dia na escola. Na sua opinião, deveríamos optar por questionar “Filhote/a, o que de bom te aconteceu hoje na escola?”, pois esta alteração na formulação da pergunta seria responsável pelo desencadear de uma torrente de comunicação positiva.
Se já não estava muito convencida com esta teoria, menos convencida fiquei quando, no intervalo da aula, a minha filha mais velha, então adolescente, me ligou para o telemóvel a pedir que fosse urgentemente para casa, porque lhe tinha corrido tudo mal na escola e não estava a sentir-se bem. Abandonei à pressa a aula de psicologia positiva para ir rapidamente para casa, onde encontrei a minha filha prostrada no sofá. Contou-me que uma colega da mesma idade tinha ameaçado cortar os pulsos com um x-ato na casa de banho da escola, situação que a tinha deixado muito perturbada. Ainda para mais, como se impressionava com sangue, sentia-se maldisposta. Resumindo e concluindo, se eu naquele dia tivesse tido a brilhante ideia de perguntar à minha filha “Filhota, o que de bom te aconteceu hoje na escola?”, a resposta teria sido certamente “Nada”.
Se o primeiro contacto com a psicologia positiva não foi coroado de êxito, não posso dizer que, daí para a frente, a aproximação tenha sido mais feliz. Em prol da felicidade, a professora sugeriu que no dia do teste de psicologia, para nos sentirmos felizes durante a sua realização, fizéssemos uma festa na aula, com comes e bebes. Os meus colegas aderiram ao repto e, nesse dia, tivemos uma mesa repleta de iguarias no centro da sala, na qual nem sequer faltou a linguiça assada no fogareiro de barro e umas garrafas de vinho verde.
Sentada no meu lugar, incapaz de partilhar tamanha felicidade, não conseguia concentrar-me com o crepitar e o cheiro da linguiça a assar… e a folha continuava em branco. Ao fim de uma hora, a minha colega do lado perguntou-me baixinho se não tencionava escrever nada. Ao partilhar as minhas dúvidas quanto a tamanha felicidade, a colega relembrou-me, revelando grande pragmatismo, que se deixasse uma cadeira para trás não subiria dois escalões na carreira e não teria o correspondente acréscimo de vencimento no final de mês.
Vendo as coisas por esse prisma, decidi-me a agarrar na caneta e a tentar recuperar o tempo perdido para responder às perguntas do teste. Vencida mas não convencida, consegui terminar a licenciatura e subir os dois escalões na carreira, o que, isso sim, aumentou a minha felicidade. Mas foi uma felicidade de curta duração, porque, pouco tempo depois, devido a uma reestruturação na carreira docente, todos os professores desceram na carreira e aqueles que estavam no meu escalão foram os mais atingidos, tendo descido não dois… mas três escalões!
Esta história ilustra bem a minha reserva quanto a este tipo de teorias, explanadas em livros de auto-ajuda que nos prometem ser felizes em dez passos, se seguirmos a receita prescrita pelos especialistas em felicidade. Esta reserva não significa que eu não deseje ser feliz. Claro que desejo! Quem não deseja ser feliz? O que não acredito é que o caminho para a felicidade possa ser prescrito em dez passos. Mais: tenho dúvidas de que o caminho para a felicidade seja aquele que tem a felicidade como objetivo final.
Como se monta a cilada
Será que, com tamanha valorização da felicidade, não estaremos a cair na cilada de montarmos a nós próprios aquilo a que o terapeuta Russ Harris chama a armadilha da felicidade? Esta armadilha consiste, na sua perspetiva, na “tentativa de evitar ou fugir dos sentimentos negativos para nos sentirmos felizes. E quanto mais nos esforçamos, mais negatividade criamos”. Com esta atitude reiterada, corremos o risco de aumentar aquilo que pretendíamos negar, através do fenómeno denominado por amplificação, explicado por Susan Cain na obra Le bonher d’être triste: “Desde o momento em que as emoções são negadas ou ignoradas, tornam-se mais fortes.”
No livro com o emblemático título A armadilha da felicidade, Russ Harris defende que “passar a vida a correr atrás da felicidade resulta, geralmente, numa insatisfação constante. Na verdade, quanto mais perseguimos os sentimentos de prazer, mais propensos nos tornamos a sofrer de ansiedade e depressão”. O neurologista Viktor E. Frankl corrobora desta opinião. No livro A voz que grita por um sentido escreve: “É a própria busca da felicidade que impede a felicidade. Quanto mais fazemos dela uma meta, mais ela nos escapa.”
Russ Harris explica como, na busca da felicidade, se monta a armadilha que impede essa mesma felicidade: “A realidade é que o sofrimento faz parte da vida. Mais cedo ou mais tarde, todos teremos de enfrentar uma crise, uma desilusão ou um fracasso. Isto significa que, de uma forma ou de outra, todos vamos experimentar pensamentos e sentimentos dolorosos.” Negando estes sentimentos considerados negativos, “empurram-nos para uma luta que nunca poderemos vencer: contra a nossa própria natureza humana. É essa a luta que monta a armadilha”.
Em busca de um sentido
No livro Metafísica da verdadeira felicidade, o filósofo Alain Badiou defende uma “distinção categórica” entre felicidade e satisfação, introduzindo o conceito de felicidade enquanto negação dialética da satisfação, afirmando que, para sermos felizes, “temos de pagar o preço que é, muitas vezes, estarmos verdadeiramente insatisfeitos”. Esta escolha que, segundo afirma, é a verdadeira escolha das nossas vidas, consiste “na descoberta, dentro de si mesmo, da capacidade para fazer algo que não sabia ser capaz de fazer”. Nesta linha, “a felicidade está do lado da afirmação, da criação, da novidade”.
Para Russ Harris o significado da felicidade é uma vida rica plena e significativa: “Quando nos empenhamos nas coisas que realmente importam, quando avançamos em direções que consideramos válidas e legítimas, quando sabemos claramente que valores defendemos e agimos nesse sentido, a vida torna-se mais rica, plena e significativa, e experienciamos um poderoso sentido de vitalidade. Não se trata de um sentimento fugaz, mas da profunda sensação de uma vida bem vivida. E, embora essa vida nos dê muito prazer, também nos traz tristeza, medo e raiva. Outra coisa não seria de esperar. Se queremos viver uma vida plena, temos de experienciar toda a gama de emoções humanas.”
Nesta linha, Viktor E. Frankl coloca a tónica na procura do sentido da vida como algo de central na vida humana: “O homem está sempre em busca de sentido, a lançar-se nessa demanda. A vontade de sentido deve ser olhada como a principal preocupação do homem”, sendo que, de acordo com este autor, “este sentido, por ser único, é uma questão de descoberta pessoal”.
Embora estas perspetivas tornem o caminho para a felicidade mais desafiante do que o prometido pela professora de psicologia, devo confessar que, pelo menos — felizmente —, já não me sinto isolada com as minhas reservas e dúvidas. Depois de anos com os escaparates das livrarias inundados de manuais de acesso à felicidade, são cada vez mais os títulos que alertam para a armadilha da felicidade; que reivindicam a legitimidade de sentir toda a gama de emoções, sejam elas positivas ou negativas; e que colocam em primeiro lugar a procura de um sentido para a vida, em busca do qual podemos passar por momentos em que nos sintamos genuinamente felizes e outros verdadeiramente insatisfeitos.
Enfim, não comi a linguiça, desci três escalões na carreira… Mas, agora sim, sinto-me finalmente mais perto da felicidade!
*Na época pré-Bolonha, os professores do 1.º Ciclo da minha geração fizeram primeiro o bacharelato e mais tarde a licenciatura.
A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990