Uma afronta aos verdadeiros professores
Fica a perceção social de que para se ser professor é preciso apenas alguns créditos, desvalorizando por completo o conhecimento científico, a pedagogia, a psicologia educacional, etc..
Mais uma vez em pleno agosto, e após uma conferências de imprensa folclórica onde o ministro da Educação veio com pompa e circunstância apresentar os números de professores colocados, números esses que já foram desmentidos, foi apresentada uma proposta de alteração de requisitos para se poder dar aulas.
O objetivo é combater a falta de docentes, mas fico com dúvidas relativamente à qualidade do ensino nas escolas públicas, devido à mais que previsível descida da qualidade dos futuros professores.
Sobretudo durante o último ano letivo, ficou por demais evidente que a falta de professores é uma emergência educativa e, por conseguinte, alguma coisa teria de ser feito para inverter a situação. O problema não é nem recente nem inesperado, mas nem por isso houve vontade política para o resolver. Como tive oportunidade de escrever em outubro de 2020, para o problema da falta de professores sempre houve soluções, bastava que tivesse havido vontade de o resolver.
Perante este cenário haveria pelo menos dois caminhos, parecendo que o ministro escolheu o mais fácil, mas também o pior!
Caminho esse que criará critérios mínimos para aceder à docência. Assim, qualquer licenciado, independentemente da formação de origem, desde que tenha alguns créditos definidos, pode dar aulas. Não é preciso crédito nenhum para se perceber que este caminho não só será altamente prejudicial para os alunos que frequentam a escola pública como também é uma verdadeira afronta aos verdadeiros professores.
De facto, não posso ficar descansado enquanto não souber o que poderá acontecer com quem concorrer com o que vier a ser considerado “habilitação própria”. Para já, diz o ministro, não acederá à carreira, apenas poderá dar aulas, fazer uns “biscates”, digamos assim. Mas no futuro não sabemos. Na realidade, se estiver vedado o acesso à carreira a esses licenciados, não se resolve a falta de docentes, nem a questão da estabilidade e ainda aumenta a proletarização da profissão e sua função.
Assim sendo, fica a perceção social de que para se ser professor é preciso apenas alguns créditos, desvalorizando por completo o conhecimento científico, a pedagogia, a psicologia educacional, etc.. Fica a perceção de que o professor é um simples proletário, que papagueia manuais, sejam eles digitais, ou não!
Abrindo as possibilidades de mais licenciados poderem ser candidatos à docência, através da revisão das respetivas habilitações mínimas, oferecendo uma entrada na carreira mais lesta, baixando a fasquia e o rigor na seleção, pode-se conseguir aumentar o nível de interessados, mas não se conseguirá nem captar os melhores, nem evitar que muitos outros desistam.
Há, cada vez mais evidente, um problema grave na profissão de professor. Os baixos salários considerando a carga laboral. Tal com está estruturada, a carreira docente deixou de ser atrativa para a maioria dos verdadeiros professores. Mesmo admitindo que, num país de baixos salários, possamos vir a ter daqui para a frente mais licenciados a quererem dar aulas, na perspetiva de verem os seus rendimentos aumentarem.
Mas, sendo o vencimento a única razão pela qual possamos ter mais candidatos, teremos mais um problema: o Governo considerar que a tabela remuneratória da carreira docente não precisar ser revista em alta por comparação com as demais. Sempre nivelando por baixo, mas agora com o argumento de que para se aceder não será preciso tantas qualificações e por isso não se pode aumentar os rendimentos.
De que serve oferecer um acesso rápido e desqualificado a futuros candidatos, se maltratam e faltam ao respeito aos que são professores?
O problema da falta de verdadeiros professores não está, creio até que esse seja um problema de somenos, no recrutamento. Está sobretudo na falta de condições globais. Ajustando e melhorando estas condições, os candidatos surgiriam naturalmente. O foco deveria ter sido esse. Como não foi, considero que iniciámos um caminho que levar-nos-á à efetiva falta generalizada de verdadeiros professores, ficando o sistema cheio de curiosos, avençados e biscateiros.
Esta situação, por sua vez, conduzir-nos-á a um estado de emergência educativa onde o recurso a “qualquer um” que aceite desempenhar a função de professor por um valor bem mais atrativo para quem contrata, seja a prática comum.
A solução para a falta de verdadeiros professores passará sempre por dignificar e tornar a carreira mais atrativa, devolvendo-lhe alguma dignidade.
Em primeiro lugar, devolvendo o tempo de serviço efetivamente trabalhado para efeitos de progressão, eliminando as quotas.
Em segundo lugar, revendo os índices remuneratórios que, como já tive oportunidade de escrever, sofreram desde 2009 uma atualização ridícula. No índice 167, que corresponde aos professores contratados e no primeiro escalão da carreira, o aumento foi de 18,27€, bruto em 13 anos. Absurdo, sobretudo se virmos que quem decide se aumentou.
Em terceiro lugar, alargando as possibilidades de vinculação de acordo com as reais necessidades do sistema, dando incentivos para professores deslocados e garantindo a equidade nos descontos para a segurança social entre professores.
Em quarto lugar, criando condições organizacionais promotoras de ambientes saudáveis: revendo o modelo de gestão dos estabelecimentos de ensino, recuperando a sua democraticidade; revalorizando o currículo; reduzindo o número de alunos por turma e definindo o máximo de alunos por professor; revendo a Avaliação de Desempenho Docente; atribuindo mais meios para a inclusão; reduzindo drasticamente a burocracia escolar, redefinindo as tarefas que são da competência dos serviços e as que são dos professores, devolvendo-lhes o tempo necessário para que se possam focar na sua primordial tarefa, ensinar; combatendo veementemente a indisciplina e violência em meio escolar.
Colocando em marcha estas medidas, naturalmente os jovens tenderiam a sentir-se mais motivados a seguir esta tão nobre profissão, evitar-se-ia o nivelamento por baixo dos futuros pseudoprofessores.
O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990