Cláudio Martins: há clientes estrangeiros que “não compram vinhos portugueses porque são superbaratos”
Por causa do lançamento do pack de dois moscatéis de Setúbal que custa 6162 euros, estivemos à conversa com Cláudio Martins, o consultor que quer tornar o vinho português mais caro.
Cláudio Martins ainda não tinha 20 anos quando foi viver para Londres. Esteve duas décadas a trabalhar no universo do vinho. Quando a pandemia se instalou, entrou em Portugal de rompante. Soprar o seu nome numa mesa com produtores, comerciantes ou jornalistas provoca uma zaragata sem fim. Ele cultiva isso e mantém o rumo: mostrar aos ricos que só compram rótulos que Portugal, em matéria de vinhos, não é menos que França, Itália, Espanha ou os EUA.
Primeiro foi o Júpiter por 1000€ a garrafa, depois uma série de eventos só para ricos e agora temos duas garrafas de Vinho Moscatel de Setúbal (de 1961 e 1962) por 6162€. Quando criar um kit de vinho do Porto vamos ter preços ao nível de uma garrafa de Romanée-Conti?
Não. Se calhar será a preços superiores.
Explique o racional de tal estratégia.
Quando falamos de Porto, Madeira, Moscatel ou Carcavelos, falamos de produtos icónicos, com história, criados e conservados por várias gerações. Em consequência, temos de encontrar o valor de mercado certo para esses vinhos, à semelhança do que fazem outros produtores icónicos de outras regiões do mundo. Porque é que uma garrafa de Romanée-Conti custa quase 30 mil euros? Porque é vinho icónico, com qualidade reconhecida universalmente e com história. Agora, não podemos é meter preços de mil, 10 mil ou 50 mil euros em vinhos que não têm qualidade.
Mas o Júpiter nasceu em 2015 e quando chegou foi um vinho sem história vendido por 1000€ a garrafa.
Repare que eu, além da história, referi a qualidade do vinho. E não há ninguém que prove o Júpiter que não lhe reconheça qualidade. Há avaliações sensoriais distintas, mas nunca ouvir dizer que lhe faltava qualidade. O historial de uma quinta é importante, mas, sem o reconhecimento da qualidade do vinho em si, de nada serve. É a qualidade que alavanca os projectos.
Na sua opinião a qualidade do Júpiter justifica os tais mil euros?
Não é só a minha opinião. É a opinião do mercado, visto que as poucas garrafas que ainda conseguimos libertar até já são vendidas acima desse valor. Sabe que sou embaixador da Liber Pater [vinho francês que custa 30 mil euros a garrafa], um vinho que nasceu em 2004. Não tem grande história, especialmente numa região [Bordéus] que, como se costuma dizer, exige décadas de história para se afirmar. Mas é o sucesso que se conhece.
E onde está a origem do sucesso desse vinho?
Está na qualidade do vinho e está na história das vinhas e na narrativa criada à sua volta.
A ideia que dá, atendendo a todo o ruído que se cria à volta dos projectos em que está envolvido, é que a narrativa é o factor mais importante no universo do vinho.
Volto a dizer que o importante é a qualidade do vinho. Mas, no caso da Liber Pater, quando certos detalhes de produção são bem trabalhados do ponto de vista da narrativa (vinhas em pé franco, castas que se plantavam antes do período da filoxera e vinificações diferentes), consegue-se transformar o vinho numa referência mundial. Ninguém consegue criar uma marca com sucesso para o mercado global sem uma estratégia de comunicação bem feita. Claro que não escondemos que o facto de as grandes instituições do vinho francês se terem manifestado contra as teses de Loic Pasquet [criador do Liber Pater] contribuiu para o sucesso do vinho. Essas atitudes foram injustas porque o produtor só quer defender e promover o património vitícola de Graves. Quando eu entrei como consultor, em 2016/17, uma garrafa de Liber Pater custava 4200€. Hoje, custa 30 mil euros.
A Martins Wine Advisor (MWA) está apenas associada a vinhos de luxo?
Não, a MWA está associada a vários projectos e em áreas de actividade muito diferentes, mas, na área da distribuição, temos vinhos nacionais e estrangeiros para diferentes targets.
O Cláudio Martins só é notícia por causa de causa de vinhos com preços estratosféricos. Isso é táctico?
Posso admitir isso. E porquê? Porque quero alavancar o nome de Portugal no universo dos fine wines. Quero colocar vinhos portugueses na carteira de clientes estrangeiros que tenho e que não compram vinhos portugueses porque são superbaratos. Gostemos ou não, o mundo funciona assim. Ora, em vez de estar a vender a esses clientes vinhos franceses, italianos e espanhóis, porque é que não posso vender vinhos portugueses? Diga-me lá se é mau para o sector do vinho em Portugal eu demonstrar a clientes estrangeiros que os nossos vinhos são tão interessantes quanto os vinhos de países mais sonantes? Esses vinhos serão para todos? Não. Mas sabemos bem que são poucos os portugueses – e até estrangeiros – que têm um Bentley na garagem ou que podem dar a volta ao mundo a comer em restaurantes Michelin.
Acontece que o vinho, em Portugal, não é um bem de luxo. É um produto alimentar que faz parte da nossa cultura. Não se vê da vossa parte a preocupação de fazer subir o preço médio dos vinhos portugueses.
Isso não é verdade. Temos projectos ultra-premium, mas também projectos médios. E quando dizemos médios, dizemos vinhos por 70 ou 100 euros.
Em Portugal, esses valores estão muito longe de caírem na categoria de preços médios.
Vamos ter, no projecto do Dão, vinhos entre os 20€ e os 50€.
Ainda a questão do vinho como produto de luxo...
... o vinho não é, na sua essência, um produto de luxo, mas isso não impede que possa, também, ser um produto de luxo, à semelhança do acontece em muitos países. Em muitas casas, abrir garrafas de Romanée-Conti, Margaux ou Lafite é consumir um produto de luxo. Nós, em Portugal, sabemos que isso existe, mas não ligamos. Aliás, achei curioso que, num destes dias, dois canais de televisão tenham apresentado trabalhos sobre o luxo em Portugal. Mencionaram todos os produtos, menos o vinho. Em França, por exemplo, no portefólio da LVMH, os vinhos estão ao lado dos relógios e das grandes casas da moda. Em Portugal não se vê isso.
Em Portugal, o mínimo que se diz de si é que é um elitista. Vive bem com isso?
Tranquilamente. Só quero fazer um bom trabalho e não quero que me venham dar pancadinhas nas costas. Quero dignificar produtos portugueses de excelência e que precisam de estar no patamar em que estão os vinhos de outras regiões. Já temos imensos produtores a fazer grandes vinhos a preços baixos e médios. Precisamos de trabalhar a categoria premium e ultra-premium.
No mercado interno ou externo?
Nos dois. Estamos hoje, aqui, na Comporta, e sabemos que há casas de gente com grande poder de compra. Vinhos portugueses nas suas mesas há poucos. E eu recebo chamadas de gente – daqui ou da Quinta Lago – a pedir vinhos estrangeiros, sim, porque estas pessoas querem exibir aos amigos os grandes vinhos do mundo. E temos de mostrar a este tipo de clientes que Portugal tem vinhos de altíssimo nível. Não podemos é pensar que lhes vamos vender vinhos a preços de saldo. Isso não vai acontecer. E digo mais: este trabalho que estamos a fazer já devia ter sido feito há muito tempo.
O próximo planeta é espanhol e vai custar 1550€
Regressando ao Moscatel. São duas garrafas das colheitas de 1961 1962, feitos pela José Maria da Fonseca (JMF), e agora vendidas num pack por 6162€. De duas uma, ou os responsáveis da JMF não percebem nada de vendas ou o Cláudio Martins é o visionário numa terra de cegos. Qual é variável que está certa?
Primeiro, já existem no mercado moscatéis a 2500€ a garrafa (Quinta do Piloto). Segundo, esses vinhos têm, de facto, uma qualidade excepcional. Provavelmente a JMF iria vendê-los a preços acima do mercado, mas nós desafiámo-los a criar um pack especial com duas garrafas (uma de cada colheita), criado por um designer especial, e de apenas 60 unidades. Criámos uma peça rara e única pelo preço de 6162,60€.
Em que pé está o projecto do kit de vinhos fortificados?
Desafiei vários produtores para criarmos uma caixa de vinhos fortificados de Portugal (Porto, Moscatel e Madeira), que será vendida em leilão. Quem comprar essa caixa de vinhos ultra-premium compra uma peça que é única, pelo que tem de pagar muito dinheiro. E já que estamos a falar de Porto, há um exemplo que acho absurdo: a venda do Ferreira Porto Vintage de 1815, por 6800€. Como é possível que se venda um vinho do Porto com 200 anos e feito na Casa Ferreirinha por aquele valor? Isto denigre a imagem do vinho do Porto quando se sabe que se paga por uma garrafa Romanée-Conti de 1945 cerca de 500 mil dólares. A Casa Ferreirinha tem menos história que a Romanée- Conti? Não, não tem. Tem a Borgonha por trás? Ok, mas nós temos o Douro.
Essa caixa já está preparada?
Na minha cabeça, sim.
E vai custar quanto?
Não está definido o valor base, mas diria que nunca menos de 50 mil euros.
Para o vinho Madeira, alguma coisa a sair?
Vamos lançar uma colecção de vinhos Madeira com o Ricardo Diogo, da Barbeito. Serão seis colheitas, numa caixa especial, que terá um preço entre os seis e os sete mil euros.
Quando sai o vinho dos Açores?
Em breve. Será um conceito muito interessante porque, com uma mesma marca – Tarelo – queremos fazer vinhos em diferentes ilhas.
Já há data de lançamento do próximo “planeta”, da colecção Wines From Another World?
Será em Outubro e é espanhol, do Priorato.
Que planeta será?
Isso não posso ainda revelar.
Vai custar quanto?
Cada garrafa custará €1550. O lançamento decorrerá em Madrid. Continuaremos a fazer vários “planetas” à volta do mundo e fecharemos o ciclo em Portugal, com uma grande festa.
Quanto é que factura a MWA?
No ano passado, qualquer coisa como um milhão de euros. Este ano teremos um crescimento à volta de 50%.
A MWA recorre a incentivos do Estado?
Não. Neste momento só trabalhamos com capitais próprios.
O que é a Liquids Cellar Club?
É um marketplace de fine wines registados num blockchain e que lançámos esta semana. Através da compra de NFT [activos digitais únicos que se traduzem num item real], os clientes terão acesso à arte digital, ao vinho e a experiências únicas com produtores de referência. Começaremos com o Liber Parter 2018.
Por que razão investiram no Dão?
Não foi só por ser a minha origem e onde está a sede da nossa empresa (São Romão), é por ser uma região com um potencial imenso. Eu, o Tiago Macena e o António Martins comprámos vinhas na zona de Vila Nova de Tazem e vamos vindimar já este ano. Temos uma vinha em Oliveira do Hospital que foi plantada em pé franco e vamos trazer cá o Loic Pasquet, que só trabalha em pé franco, para ver o que acha disto.
Os seus pais são da região do Dão. Como é que eles reagem quando sabem que vende vinhos portugueses aos preços que conhecemos?
A minha mãe ri-se e nem tem bem a noção do que faço. Acha que passo a vida em jantaradas e está sempre preocupada com os meus níveis de colesterol. Já o meu pai, que trabalha connosco, compreende melhor o negócio.