“O que estavas a usar?”: Roupas de mais de 100 vítimas de abusos sexuais em exposição na ONU
A exposição está patente até ao final deste mês, em Nova Iorque. O objectivo, explica a activista Amanda Nguyen, é mostrar que o mesmo pode acontecer “a qualquer pessoa”, independentemente do que tem vestido.
Na noite em que foi abusada sexualmente, Jessica Long usava um vestido azul, com collants pretas e umas botas. Outras vítimas vestiam calças de ganga e T-shirt, outras um vestido de noiva, uma fralda e até um uniforme militar. São 103 coordenados usados por sobreviventes de violação no momento em que foram abusados e estão em exposição na sede das Nações Unidas, em Nova Iorque, até 31 de Agosto.
A mostra pretende representar as 1,3 mil milhões de vítimas de abusos em todo o mundo — a Organização Mundial de Saúde estima que 35% das mulheres sejam sobreviventes de violência sexual. Inaugurada a 11 de Julho, a exposição “O que estavas a usar?” quer subverter o argumento usado frequentemente para culpar as vítimas pelo crime sexual que sofreram. O projecto é uma colaboração entre a fundação Rise, dedicada ao apoio de vítimas, e da iniciativa Spotlight — uma parceria da ONU e da União Europeia para erradicar todas as formas de violência.
“Podemos iluminar até o canto mais escuro da humanidade e permitir que os sobreviventes sejam finalmente vistos, ouvidos, acreditados e capacitados”, declarou a fundadora da Rise, Amanda Nguyen, nomeada para o prémio Nobel da Paz em 2019, em comunicado. A ideia, reforçou em entrevista ao The Guardian, é que as roupas lembrem quem visita a exposição que “podia ser qualquer pessoa” a ser vítima de violência sexual.
Amanda foi um dos cinco sobreviventes a partilhar a sua história, numa primeira exposição inaugurada em Dezembro de 2021 com apenas cinco coordenados, cada um representando uma diferente área geográfica. Entretanto, a ela juntaram-se mais de 100 pessoas, incluindo a socialite norte-americana Paris Hilton, abusada quando tinha 16 anos. “Estou aqui hoje porque este abuso continua a acontecer”, lamentou, numa mensagem de vídeo.
Também a autora e especialista em negócios, Jessica Long partilhou a sua história e recordou as primeiras perguntas que lhe fizeram no hospital: “O que estava a usar? Estava a beber, a dançar, a sorrir demasiado?”. “Pode pensar-se que a pior coisa que me aconteceu nessa noite foi ser abusada, mas não foi. O pior que me aconteceu foi ser atraiçoada pelos sistemas que nos deviam apoiar e proteger. Todos os anos, dezenas de milhões de pessoas experienciam essa traição”, lembrou.
O objectivo da exposição, asseveram os sobreviventes, é dar eco à necessidade de melhorar o acesso aos serviços de apoio e à justiça em todo o mundo. “Não posso mudar o que me aconteceu naquela noite, mas posso trabalhar para mudar o sistema e assegurar que ninguém nos falha novamente”, defendeu a terapeuta infantil e sobrevivente, Britney Lane.
Coragem das vítimas
Não são só as mulheres a ser vítimas e o engenheiro aeroespacial da NASA Bryan Robles representa todos os homens que também são abusados sexualmente. Foi a primeira vez que partilhou a sua história fora da família e sublinhou que os “abusos sexuais não descriminam”. Reforçou: “Chega a todas as partes da sociedade — quer sejam ricos, pobres, vivam num bom ou num mau bairro.”
Além do trauma físico, a advogada e sobrevivente Samantha McCoy relata uma “inimaginável angústia psicológica”, como consequência de, aos 22 anos, ter sido violada por um polícia. “Foram cometidos erros cruciais na recolha de provas. Fui criticada e questionaram-me sobre coisas que não se perguntam às vítimas de outros crimes, como ‘o que estavas a usar?’”, critica.
O presidente da Assembleia Geral das Nações Unidas, Abdulla Shahidm, elogiou o papel da exposição por ser “um catalisador de conversas sobre a nossa responsabilidade colectiva para eliminar a violência contra as mulheres e crianças”.
Já a diplomata Amina Mohammed, secretária-geral adjunta da ONU, agradeceu a coragem das vítimas: “Temos de parar com este jogo de atirar as culpas e tomar atitudes para atacar a raiz das causas da violência: desigualdade de género e as estruturas patriarcais nas nossas sociedades.”
Além disso, sublinha, as roupas expostas mostram como não interessa o que cada mulher está a usar, já que “são atacadas independentemente do que vestem”. E termina: “De facto, o poder de algumas destas roupas recai na sua normalidade.”