Somos instantes

Instintivamente, voltei a olhar para o meu relógio, oferecido pelos meus pais há 23 anos, quando terminei a licenciatura, e concentrei-me no ponteiro dos segundos, refletindo no maravilhoso instante em que, de lágrimas nos olhos, o coloquei no pulso, e os abracei. Somos instantes.

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"O relógio de sol, que terá surgido por volta de 1500 a.C., foi o primeiro instrumento a permitir dividir o dia em partes menores" Jeff Greenberg/Getty

Como dançarino, tenho dois pés esquerdos. Já tentei aprender alguns passinhos, mas sinto sempre que o meu tronco não joga com as pernas e que os pés e os braços não harmonizam com coisa nenhuma. Uma encruzilhada! Tenho pena. E confesso a minha inveja pelas bailarinas e bailarinos que, leves e ágeis, umas vezes hirtos, outras ondulados, a solo, em duo ou em grupo, flutuam e viram e reviram com vaidade nas pistas, palcos ou ruas, decifrando música com o corpo, esquecendo que este de matéria é feito.

Há magia e mistério na forma como cada pessoa expressa, dançando, aquilo que ouve. Também eu ambiciono descobrir a minha expressão dançante e o meu sentido rítmico — os quais, a existirem, estarão bem escondidos. Mas talvez já vá sendo altura de avançar nesta exploração. Porventura, em paralelo com a concretização de outro projeto que também me inspira auto libertação: aprender a andar de mota. E visto que as duas atividades requerem coordenação e equilíbrio, creio que uma sustentará os ganhos da outra. Tenho vontade e um plano, meio caminho andado.

“Hip Hop – a dança urbana”, eis o título que Clara apresentou à classe na segunda parte da aula dedicada a apresentações orais. Clara começou por enunciar diversos tipos de dança, ilustrando-os com movimentos específicos ao ritmo de música adequada. Gostei particularmente do Merengue: “Éé só fazer de conta que estamos a pisar ovos.” Pareceu-me fácil. Logo que cheguei a casa, experimentei. Não correu muito bem, quiçá por não ter espalhado ovos no chão.

Clara orientou-nos ainda numa curta coreografia baseada num movimento de braço típico do hip hop antes de explicar que este género de dança urbana deriva do breakdance, nascido e desenvolvido no Bronx, em Nova Iorque, pelas comunidades negra e latina, com o objetivo de pacificar as guerras de gangues. Em vez de se matarem uns aos outros, dançavam, simulando socos, facadas e disparos para provocar os adversários. O hip hop é, pois, um movimento de paz e não de violência e de crime, como erradamente tem sido apresentado como uma das justificações para o aumento da violência juvenil em Portugal.

“Venho falar-vos sobre doces tradicionais portugueses e explicar como se confeciona um deles. Alguém arrisca adivinhar qual é?”, indagou Maria, já próximo da hora de almoço.

— Arroz-doce! —, respondi, já a salivar, esperançoso numa degustação pós formação.

— Como é que acertaste?

— É o meu preferido —, confessei, vasculhando com os olhos o saco de Maria, parecendo-me ver um tupperware (ai, que cruel é a tendência humana para ver aquilo que deseja que seja verdade).

A origem do arroz-doce remonta a 6000 a.C. e, embora seja um doce simples de confecionar, há alguns erros a evitar: ”Nunca se deve adicionar qualquer ingrediente frio ao arroz”, alertou Maria, finalizando a explicação da receita com um entusiasmado “experimentem!”. O arroz-doce nunca apareceu...

Quase sem pausa, Mónica serviu-nos, figuradamente, um Negroni num invólucro maleável. Para quem não sabe, o Negroni é um cocktail feito com gin, vermute rosso e Campari. “O gosto é forte, ou se gosta ou se odeia”, avançou. Fiquei curioso, assim como com o arroz-doce da Maria…

E, já agora, conhece a origem da palavra cocktail? Há várias teorias. Mónica revelou-nos esta: o cocktail surgiu nos Estados Unidos, em 1779, durante a Guerra da Independência, quando um irlandês chamado Flanagan começou a servir bebidas misturadas (inicialmente apelidadas de bracer) na sua estalagem em Georgetown, Virgínia.

Flanagan não se dava bem com o vizinho, um inglês criador de galos, que reclamava do barulho na taberna da estalagem até altas horas da madrugada. Por seu turno, Flanagan e a filha, Betsy, ameaçavam torcer o pescoço aos galos madrugadores que acordavam os hóspedes. Uma noite, no final de um faustoso jantar, os hospedeiros brindaram os seus clientes com bebidas misturadas em copos decorados com os penachos de mil cores que haviam arrancado aos galos. Todos felicitaram os taberneiros pela originalidade e pediram cocktails (rabos de galo) durante o resto da noite. E foi assim que o bracer passou a cocktail. Espero sinceramente que os galos não os tenham deixado dormir um minuto.

Foi de barriga vazia e de garganta seca que Bárbara nos explicou que as entidades bancárias não estão a obter tantos lucros como parece. Numa altura em que diversos bancos anunciaram lucros recorde, confesso que fiquei um pouco intrigado com a revelação, mas com o avançar da mini formação em rentabilidade, fiquei a perceber melhor o “lado” dos bancos. Nomeadamente, quais os mecanismos ativados quando alguém deixa de pagar um empréstimo e as estratégias para obterem rentabilidade. Quando Bárbara terminou, recriminei-me por não ter investido em dólares enquanto foi tempo.

Depois da curta escala no café para repor os níveis de energia, Odete falou-nos sobre os “conceitos de segurança aeroportuária” e os atos de interferência ilícita, nome técnico de tudo aquilo que, de alguma forma, pode comprometer a segurança da aviação civil. Odete ressalvou, por exemplo, a importância da identificação por parte de quem trabalha num aeroporto, a quem é atribuído um cartão pessoal e intransmissível. Por vezes, explicou, os auditores de segurança engendram estratagemas para procurar falhas no sistema. “Houve um auditor da Autoridade Nacional da Aviação Civil que circulou durante cinco dias no aeroporto com a fotografia de um cão no cartão de identificação sem que ninguém o tivesse interpelado”, exemplificou. Os telemóveis puseram mesmo toda a gente de cabeça virada para baixo e já ninguém repara realmente em alguém, não é?

Teresa não pensa assim, como provou a sua formação sobre “Imagem pessoal”, que assenta no poder da imagem como forma de gerar associações na mente das pessoas, associações essas que estabelecem a imagem de marca de cada um de nós. “Como nos vestimos, como falamos, como nos movimentamos, tudo isso faz parte do marketing pessoal.” Para o desenvolver, devemos criar uma história pessoal, única, autêntica. “Invista em si e chegará mais longe”, finalizou, abrindo caminho, como num argumento bem gizado, para a entrada em cena de Alexandra e a sua formação sobre “Fibras naturais em contexto têxtil”: algodão, lã, seda, linho e caxemira.

Ao contrário das formações de Maria (arroz-doce) e Mónica (Negroni), tivemos a oportunidade de experimentar peças confecionadas com cada uma das fibras referidas. Gostei muito da caxemira, a fibra natural mais cara do mundo, muito delicada, suave ao toque, confortável e quente, que provém das cabras de Caxemira (altos planaltos dos Himalaias na China e Mongólia). Escovando-as desde a virilha, onde se encontram as fibras mais finas, os chamados sub-pêlos, obtém-se matéria-prima para a produção da nobre lã. Uma cabra de Caxemira fornece apenas 50 a 150 gramas de lã por ano.

Pensando em investir em mim, espreitei numa loja online uma camisola de gola alta ao meu gosto, azulinha, linda, por 238 €. “Volto a tentar nos saldos”, pensei, notando noutro site que algumas marcas de roupa e alguns criadores de moda deixaram de utilizar fibras de origem animal nas suas criações devido ao sofrimento causado aos animais. Ora, também há boas e bonitas camisolas de algodão. E se tiver frio, visto umas por cima das outras.

“Que horas são?”, perguntei-me, enquanto verificava no meu relógio de pulso que o tempo para as apresentações se aproximava do fim. “O ser humano sempre necessitou de ter a noção do tempo para entender melhor tudo o que o rodeava”, introduziu Carlos, relojoeiro profissional. O relógio de sol, que terá surgido por volta de 1500 a.C., foi o primeiro instrumento a permitir dividir o dia em partes menores. “Conhecem a âncora em frente ao Mosteiro dos Jerónimos? É um relógio de sol!”, esclarece Carlos. Desconhecia.

Na história dos relógios, aos de sol, seguiram-se os de água (Clepsidra, 1400 a.C.) e os de areia (ampulheta, 600 a.C.). Num gigantesco salto no tempo, avançamos para início do século XVI, quando Peter Henlein criou o Ovo de Nuremberga, um relógio de bolso, transformando para sempre a indústria relojoeira. Desde então, passámos a levar instrumentos de medição de tempo connosco para toda a parte. Instintivamente, voltei a olhar para o meu relógio, oferecido pelos meus pais há 23 anos, quando terminei a licenciatura, e concentrei-me no ponteiro dos segundos, refletindo no maravilhoso instante em que, de lágrimas nos olhos, o coloquei no pulso, e os abracei. Somos instantes.


O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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