Violação, misoginia e poder: Laia Abril documentou “o controlo sistémico das mulheres”
O livro On Rape, da artista Laia Abril, tem como fio condutor a história da própria humanidade e responde a duas questões essenciais: de que forma as leis e instituições respondem às agressões dirigidas a mulheres ao longo dos tempos e quem são, invariavelmente, os beneficiários dessas leis.
Decorriam as festas de S. Firmino, em Pamplona, Espanha, quando Alfonso Jesús Cabezuelo, Antonio Manuel Guerrero, José Ángel Prenda, Jesús Escudero e Ángel Boza, membros de um gang conhecido por La Manada, violaram em grupo uma mulher de 18 anos. Os homens, que gravaram em vídeo o abuso, foram considerados culpados de um delito menor de abuso sexual devido à falta de provas relativamente ao uso de violência.
“A defesa alegou que os 96 segundos de vídeo realizado pelos perpetradores – durante os quais a vítima permaneceu imóvel e de olhos cerrados – constitui prova de consentimento”, pode ler-se nas páginas do livro On Rape – And Institutional Failure, da artista multimédia Laia Abril, que será publicado em Setembro de 2022 pela editora Dewi Lewis. “Este caso deu azo a um dos maiores protestos da história espanhola, exigindo a revisão das leis relativas ao crime de abuso sexual e o aumento das penas associadas.”
Na sequência deste acontecimento, Laia Abril “ficou obcecada com esse falhanço institucional”, contou à Foam; quis, por isso, “compreender o motivo pelo qual as estruturas policiais e judiciais falharam na protecção dos sobreviventes [deste tipo de crime]”. As leis, observa, tal como estão formuladas, “encorajam os perpetradores a preservar uma dinâmica de poder particular” que premeia “a cultura da violação” e “o controlo sistémico das mulheres em todo o mundo”.
Este livro, elaborado por Abril ao longo de vários anos, contém texto, testemunhos na primeira pessoa, fotografias, stills de vídeos de abusos sexuais, de jogos de vídeo que têm como missão a violação, recortes de jornais que relatam crimes sexuais, citações misóginas de juízes, de líderes de partidos, de governos (como a famosa frase de Jair Bolsonaro “não estupro porque é feia"), entrevistas com especialistas em violência sexual. Tem como fio condutor a história da humanidade e responde a duas questões essenciais: de que forma as leis e instituições respondem às agressões dirigidas a mulheres, ao longo dos tempos, e quem são, invariavelmente, os beneficiários dessas leis.
On Rape, o segundo volume da série A História da Misoginia (o primeiro, On Abortion, conheceu publicação no P3 em 2021), coloca em perspectiva histórica o crime de abuso sexual, identificando estereótipos e mitos com base de género que perpetuam a cultura da violação. A sua análise – que encontra várias linhas narrativas onde a cronológica assume maior preponderância – começa próxima do ano zero. “Em tempos bíblicos, uma das leis relativas à violação tinha por base os limites geográficos de uma cidade”, começa Laia.
“Se a violação ocorresse dentro da área muralhada da cidade, era assumido que a mulher poderia ter gritado e sido ouvida”, continua a artista espanhola. Nesse caso, homem e mulher seriam condenados à morte por apedrejamento – a mulher por não ter gritado por ajuda e o homem por ter violado mulher alheia. “Se o incidente tivesse lugar fora das muralhas, a mulher não poderia ser considerada culpada porque ninguém a poderia ouvir gritar.” No livro, este facto é acompanhado de uma pedra onde está inscrito um mapa.
Nesse caso, se a mulher não fosse casada, a lei determinava que deveria casar-se com o seu violador – esse evitaria, assim, condenação e castigo. Há 20 países onde, ainda em 2021, a lei permite que o violador não seja criminalizado caso contraia matrimónio com a vítima – nomeadamente a Rússia, Tailândia e Venezuela.
Laia descreve ainda uma prática já extinta no Ocidente. Em tempos feudais, na Idade Média, havia “o direito da primeira noite”, em que o senhor feudal, em terras suas, poderia ter relações sexuais com uma noiva na sua noite de núpcias, antes do próprio marido. A enciclopédia Brittanica afirma que esta prática podia ser encarada como um imposto dos senhorios sobre os matrimónios dos servos.
A mercantilização do corpo e da sexualidade feminina é transversal a todas as eras, sociedades, geografias. “Conquistar e escravizar sexualmente as mulheres durante a guerra era entendido como estando dentro das regras de combate em muitas civilizações”, escreve Abril, que dá um exemplo: “Na Grécia Antiga, as mulheres capturadas eram consideradas propriedade que poderia ser convertida em esposa ou concubina.”
Colonizadores franceses e espanhóis, na América do Norte, refere Abril, “escravizavam mulheres africanas, indígenas e mestiças que eram, além de forçadas ao trabalho doméstico, obrigadas a ter relações sexuais com os seus donos”.
No século XX, durante a guerra na Bósnia, entre 1992 e 1995, “tropas sérvias violaram entre 12 e 50 mil mulheres bósnias”, refere a artista. “A violação era utilizada como um instrumento de terror. As forças sérvias montaram campos conhecidos como ‘casas de violação’, como a Casa Karaman ou Vilina Vlas Hotel, onde mulheres e crianças muçulmanas foram violadas durante meses, muitas vezes na presença de outras.”
O fenómeno, neste contexto, não é exclusivamente feminino. “Oitenta por cento dos homens residentes nos campos de concentração de Sarajevo reportaram terem sido violados. O Tribunal Internacional declarou, nesta altura, que a violação sistémica consiste num crime contra a humanidade. Foi a primeira vez que alguém que usou a violação como arma de guerra foi condenado num tribunal internacional.”
Já no século XXI, em 2008, uma adolescente foi apedrejada até à morte por 50 soldados somali diante de uma multidão de mil pessoas. “Ela foi considerada adúltera após ter reportado às autoridades ter sido violada por três homens”, explica Laia Abril. A Amnistia Internacional confirmou que ela tinha apenas 13 anos e que não poderia responder criminalmente.
Durante a pandemia de covid-19, “estudos sobre assédio online puseram em evidência a utilização, por parte de traficantes de seres humanos, das redes sociais no aliciamento e na venda de jovens mulheres”. Ocorreu, durante esse período, um aumento do tráfico sexual e exploração infantil.
O documento criado por Laia Abril não é isento. “Sinto que estou muito presente [na selecção da informação presente no livro], que assumi o papel de filtro emocional”, conta à Foam. On Rape não é tão objectivo como o anterior, On Abortion. “Quando tratava o tema do aborto, havia dados estatísticos e, principalmente, havia uma solução. No caso do abuso sexual, da violação, não existe uma solução. Não conhecemos a solução, não a temos.”
Sentiu, à medida que compilava informação, cada vez mais desesperança. “Porque é que estou a fazer isto? Não vou mudar o mundo.” Acredita que o seu livro se traduz num esforço de consciencialização para a problemática do abuso sexual, da misoginia, da desigualdade. “No seu interior está um desejo meu, apenas e só: que a vida de todos seja melhor.”