Azar de ser filipino
Em Macau nunca se tinha ido tão longe apontando o dedo a uma categoria de pessoas de uma nacionalidade. Ontem foram os vietnamitas e os birmaneses. Hoje são os filipinos. Amanhã serão os portugueses, com feições mais ou menos europeias, e depois todos os restantes. Podiam ser negros, gays, judeus. Calhou serem filipinos e haver alguns que gostam de confraternizar no exílio.
Há dias, em Genebra, nas audições sobre a aplicação em Macau do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos (PIDCP), que tiveram lugar no Comité dos Direitos Humanos da ONU, entre 12 e 15 de Julho, o japonês Shuichi Furuy quis saber se as medidas adoptadas pelo Governo de Macau, na sequência do mais recente surto de covid-19, eram “compatíveis com os direitos garantidos pela Lei Básica e pelo PIDCP”, afirmando que, se a aplicação efectiva dessas medidas restritivas for compatível com o pacto, então deviam ser decididas de acordo com a sua “necessidade e proporcionalidade”. Para o inquiridor da ONU, a imposição de restrições severas infringia os direitos garantidos pelo PDICP, pelo que aconselhou Macau a evitar a imposição de “restrições desnecessárias e desproporcionais”.
A tudo o que foi perguntado, os representantes de Macau, liderados pelo secretário para a Administração e Justiça, tentaram dar resposta, embora em muitos casos esta fugisse gritantemente da realidade e da verdade dos factos.
Bastaria que aquelas audições tivessem tido lugar hoje, ou que o Governo da RAEM fosse mais lesto a aprovar as medidas ontem anunciadas, e haveria certamente mais para discutir e esclarecer em Genebra.
Refiro-me à imposição da obrigatoriedade aos cidadãos filipinos de Macau de serem sujeitos a dois testes diários de despistagem da covid-19, sine die, um antigénio a realizar antes de saírem de casa e o outro de ácido nucleico, vulgo PCR, numa das estações de colheita dos SSM.
Esclareça-se, a bem da verdade, que já há algum tempo haviam sido definidos grupos e zonas de risco. Porém, ainda não se havia ido tão longe apontando o dedo especificamente a uma categoria de pessoas de uma nacionalidade, já que é disto que se trata.
O Consulado-Geral das Filipinas emitiu um comunicado pedindo à sua comunidade de mais de 30.000 pessoas para se sujeitar a essa medida sem levantar ondas. Numa nota publicada no Facebook, pediu aos seus nacionais para que não olhem para a medida como um assunto de natureza política, mas antes como uma questão de saúde pública inserida nos esforços do Governo de Macau para alcançar a meta da “tolerância zero dinâmica”.
Não quero aqui discutir a irracionalidade da referida meta e os prejuízos que têm vindo a causar ao bem-estar dos residentes e à sua economia há quase dois anos e meio, nem as múltiplas nuances linguísticas de que os spin doctors da propaganda nacionalista se servem para enganar tolos, ignorantes e os idiotas úteis ao seu serviço nalguma comunicação social mais subserviente, nas redes sociais ou em Portugal.
Aparentemente, de acordo com a explicação dada na conferência de imprensa, as pessoas de nacionalidade filipina, incluindo os residentes de Macau portadores de passaporte filipino, correspondem, na primeira e única vaga registada digna desse nome em mais de dois anos, a 171 casos, cerca de 9,5% dos 1795 casos positivos registados. E são objecto desta medida porque “nesta comunidade tende-se a verificar mais contactos e encontros entre amigos, pelo que devemos encontrar as possíveis fontes de infecção por meio de inspecções de alta frequência”. A médica que o disse, poderá parecer anedota mas é a profissão com que é apresentada, excluiu que houvesse discriminação, referindo que anteriormente haviam sido aplicadas medidas semelhantes a birmaneses e vietnamitas, o que, sendo verdade, só serve para aumentar as preocupações de todos, residentes e comunidade internacional.
No entanto, as diatribes contra estrangeiros, para não lhe chamar perseguição, em especial contra os trabalhadores não-residentes (“blue cards”) filipinos, não é nova entre os patriotas ao serviço do princípio “um país, dois sistemas”, constituindo antes um padrão de actuação.
Na verdade, em Outubro de 2017, numa altura em que Macau se posicionava como uma das regiões mais ricas do mundo e os casinos batiam todos os recordes de receitas, levando os filipinos das empresas de segurança a correrem de um casino para outro para recolherem os milhares de milhões de dólares que entravam nas mesas do jogo, o então secretário para os Transportes, que é o mesmo de hoje, avançou com uma proposta para introduzir preços diferentes nas viagens de autocarro para trabalhadores não-residentes e residentes, esclarecendo na altura que a motivação não era de ordem económica. Ora, a maioria dos trabalhadores filipinos são empregadas domésticas, não havendo um salário mínimo obrigatório. As trabalhadoras domésticas recebem em regra um valor mensal que oscila entre as 3500 e as 4500 patacas, quando a média dos salários é de mais de 15.000 patacas, sendo a dos residentes de cerca de 18.000 (1906 euros), conforme referia um despacho da Lusa (3/10/2017). Face aos protestos de muitos residentes, o Governo acabou por recuar quanto a essa medida.
Depois, em 2018, o actual representante de Macau em Lisboa, Dr. Alexis Tam, ao tempo responsável pela Saúde e Assuntos Sociais do anterior Governo, na sequência de uma proposta dos Serviços de Saúde que aumentava em 9 (nove) vezes as taxas de parto das trabalhadoras não-residentes, certamente para evitar que parissem no local de trabalho, esclareceu que iria apresentar uma nova proposta para “apenas” triplicar essas taxas. O que fez.
Já com o actual chefe do executivo foi apresentada, na Assembleia Legislativa, uma proposta para limitar a importação de trabalhadores não-residentes, em resultado das pressões dos patriotas chineses, a qual um ano depois se revelou destituída de sentido. De tal forma que os mesmos deputados que a defenderam vieram queixar-se de que, afinal, as trabalhadoras domésticas chinesas queriam receber o dobro das filipinas e que era melhor autorizar de novo a entrada destas, o que lhes valeu uma reprimenda pública de Ho Iat Seng.
A medida agora concretizada, como outras aprovadas durante a pandemia, é a minha leitura desde 2017, insere-se, pois, num conjunto de iniciativas de natureza política e cariz patriótico que visa afastar da RAEM os estrangeiros, tornando-lhes a vida cada vez mais difícil e desconfortável para assim os obrigarem a partir. Seguro é que medida idêntica não foi aplicada aos outros 90% – de que nacionalidade, pergunta-se? – que testaram positivo nesta vaga.
Esta decisão é mais uma violação rasteira da Declaração Conjunta Luso-Chinesa e da Lei Básica, chegando ao ponto de mesmo em relação a residentes da RAEM, incluindo os residentes permanentes de Macau de passaporte filipino, e não apenas trabalhadores “blue card”, discriminar com base na nacionalidade, sendo que entre os residentes também há cônjuges, companheiras e mães de nacionais portugueses.
O artigo 25.º da Lei Básica dispõe que “os residentes de Macau são iguais perante a lei, sem discriminação em razão da nacionalidade, ascendência, raça, sexo, língua, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução e situação económica ou condição social”. Também o PIDCP, que está em vigor, é de aplicação imediata, não foi objecto de reservas por parte da China e não depende de actos legislativos locais para ser exequível, proíbe a discriminação com base na nacionalidade.
Mas é esta, e isto é muito grave, que efectivamente está em causa e é assumido pelo Governo de Macau. Depois da imposição de um estado policial, em que o Estado de direito é uma sombra do que foi, em que são polícias e burocratas que decidem e interpretam a lei condicionando quem tem de aplicá-la, é hoje normal a existência de dois pesos e duas medidas, como há dias se viu com a instauração de processos-crime a quem fumava sozinho à porta de casa (condenação a cinco meses de prisão e 10.000 patacas de multa) ou a quem circulasse sozinho sem máscara, para momentaneamente se aliviar do suor intenso provocado pelas altas temperaturas e a humidade, ao mesmo tempo que oito polícias eram filmados a confraternizar e a fumar sem máscara e sem que nada lhes acontecesse com a desculpa de que aquele era um espaço de convívio há muito utilizado para esse efeito.
De Portugal, do rei das selfies, do vidente de Boliqueime, dos excursionistas da AR, actuais e anteriores, do primeiro-ministro ou do actual MNE não se ouve uma palavra. De André Ventura e da sua trupe também não se espera nada, atento o modo como olham para os estrangeiros.
Não sei se esta medida é mais uma das destinadas a restituir “à grande Estupidez a dignidade”, como escreveu Melo Franco, citado por Jorge de Sena, n’O Reino da Estupidez. Todavia, após a ideia peregrina de integrar os macaenses no grupo das minorias étnicas da China, aqui nunca se tinha chegado tão longe com tanta displicência. Ontem foram os vietnamitas e os birmaneses. Hoje são os filipinos. Amanhã serão os portugueses, com feições mais ou menos europeias, e depois todos os restantes. Podiam ser negros, gays, judeus. Calhou serem filipinos e haver alguns que gostam de confraternizar no exílio.