Jornalismo português censurado em Macau
Numa penada, o jornalismo transmutou-se em propaganda. Segundo a nova cartilha, os jornalistas deixam de poder sê-lo para passarem a divulgadores e promotores da propaganda política do Partido Comunista Chinês (PCC) e do subalterno governo de Macau. Esperemos que o Governo português perceba que foi ultrapassada uma linha vermelha e pare de assobiar para o lado.
A censura foi praticamente oficializada em Macau. Já era clara sobre o jornalismo em língua chinesa. Chegou a vez de calarem as vozes dissonantes em línguas portuguesa e inglesa. Esperemos que o Governo português perceba que foi ultrapassada uma linha vermelha e pare de assobiar para o lado.
O cenário foi uma sala da TDM, a televisão e rádio públicas de Macau. Cerca de quarenta jornalistas foram convocados para uma reunião, na sua maioria portugueses. Foi-lhes comunicado que a Comissão Executiva havia aprovado nove regras que passariam a constituir a nova directriz editorial da TDM.
O documento não lhes foi entregue, mas as directrizes foram lidas, relidas e anotadas pelos jornalistas presentes. Ou não se tratasse de uma reunião de jornalistas. São uma pérola. Entre outras: a TDM ‘divulga e promove o patriotismo, o respeito e o amor à pátria e à RAEM’ (a RAEM é Macau); é ‘um órgão de divulgação da informação do Governo Central da China e da RAEM’; ‘divulga as políticas da RAEM’; ‘o pessoal da TDM não divulga informação ou opiniões contrárias às políticas do Governo Central da China e apoia as medidas adoptadas pela RAEM’.
Quem violasse a cartilha seria despedido com justa causa, sem direito a indemnização – o que é rudemente ilegal.
Numa penada, jornalismo transmutou-se em propaganda. Segundo a nova cartilha, os jornalistas deixariam de poder sê-lo para passarem a divulgadores e promotores da propaganda política do Partido Comunista Chinês (PCC) e do subalterno governo de Macau, tornando-se ‘patriotas’, escamoteando factos, omitindo opiniões, ouvindo e narrando só um dos lados da história.
Ser ‘patriota’ por estes lados nada tem que ver com um sentimento de pertença ou identidade a um país ou uma cultura. Significa, no linguarejar local, ser um obediente e disciplinado seguidor do PCC. Uma subordinação cega, ideológica e política, ao poder e às políticas da China, com renúncia a opinião própria diversa. Não tem nada do que de nobre muitos encontram na palavra ‘pátria’.
Na véspera fora noticiado que as comissões de serviço do director e do director-adjunto de Informação e Programas dos Canais Portugueses haviam sido renovadas por apenas seis meses, metade do habitual. Para manter a ‘rédea curta’.
As instruções caíram como uma bomba sobre dezenas de jornalistas competentes, íntegros e corajosos, que cultivavam a lealdade a factos – não a ‘pátrias’ –, colocando-os perante um dilema e um drama pessoal. Longe de Portugal, muitos com filhos nas escolas, enraizados familiarmente em Macau, sem bilhete de regresso nas mãos. Vítimas de um ataque atroz e injusto às suas consciências.
Injustiça que os capatazes das novas directrizes nem entendem, pois o seu código de vida reside na promoção pelo medo, subjugação e fidelidade canina ao poder, expressão de uma descontextualizada síndroma de Estocolmo. Estes ‘patriotas’ não compreendem que a lealdade daquelas dezenas de jornalistas é a valores (como a independência e a veracidade), não a pessoas, governos, partidos, pátrias ou a um á-bê-cê de tiradas governativas.
Esta não é mais uma questão interna de um país estrangeiro. É também um problema de Portugal. Macau constitui desde 1999 uma Região Administrativa Especial, autónoma da China, governada ‘pelas suas gentes’ (não pela China), com a sua própria constituição (Lei Básica), onde a lei chinesa não se aplica e os tribunais chineses não têm jurisdição. Tudo isto sob o princípio ‘Um País, Dois Sistemas’: o sistema ‘comunista’, na China; o de Estado de Direito, com liberdade económica e protecção de direitos fundamentais, em Macau.
A Lei Básica garante o princípio da continuidade do sistema jurídico, ou seja, que o direito de matriz portuguesa continuará a vigorar. A autonomia de Macau em relação à China é quase inexcedível, sendo superior, excepto num par de matérias, à de Portugal face à União Europeia. A China está proibida de interferir na vida interna de Macau – o que foi acordado com Portugal para que a autocracia não se instalasse em Macau. Mas interfere crescente e despudoradamente.
Estes arranjos foram assegurados por via de um acordo bilateral internacional entre Portugal e a China (a Declaração Conjunta Luso-Chinesa sobre a Questão de Macau de 1987), depositado nas Nações Unidas, relativo à transferência da administração de Macau para a China. Nos termos deste acordo, a China vinculou-se perante Portugal a respeitar, durante 50 anos (que terminarão em 2049), o Estado de Direito, a iniciativa privada, a autonomia, a continuidade e os direitos fundamentais em Macau, incluindo a liberdade de imprensa.
Portugal tem obrigações, quer históricas, quer de direito internacional, para com Macau, cabendo-lhe exigir à China que os residentes de Macau, portugueses (quase 200 mil nacionais), chineses ou de outra nacionalidade, continuem a viver segundo regras e valores similares aos de Portugal e de países europeus.
Estas directrizes colidem frontalmente com os princípios da continuidade e da autonomia, desde logo ao afirmarem que a TDM ‘é um órgão de divulgação da informação do Governo Central da China’. Bem como ao proibirem que os jornalistas investiguem irregularidades, noticiem factos e divulguem opiniões desfavoráveis ao poder político, de Macau ou da China.
Pior – não se limita a censurar e proibir. Impõe condutas, obrigando os jornalistas a promover a linha oficial do PCC e do governo de Macau.
Esta tentativa de escravidão do jornalismo à propaganda política esmaga a liberdade de imprensa, garantida constitucionalmente, que nem o legislador poderia aniquilar. Quanto mais uma Comissão Executiva. O Estado de Direito não resistirá sem liberdade de imprensa.
O desprezo mostrado pelos direitos fundamentais revelou-se no modo estapafúrdio com que a medida foi implementada: mandaram ler a cartilha a 40 jornalistas, como se eles a engolissem silenciosamente… Esta arrogância quase autista é um sinal dos tempos: o PCC já deixou há muito de se preocupar com aparências.
Estes jornalistas têm sido essenciais para que, apesar de pressões crescentes, se respire ainda em Macau um ar de liberdade. Tem sido na televisão, na rádio e nos jornais em línguas portuguesa e inglesa que se conhecem factos e ouvem opiniões divergentes, se questionam governantes e se expõem abusos de poder.
O Sindicato de Jornalistas de Portugal já se manifestou solidário com os jornalistas da TDM. O Governo português devia tomar uma posição firme, para que, por uma vez, as gentes de Macau sentissem que Portugal não desligou a luz quando fechou a porta.