Ucrânia: a paz cada vez mais longe?

Voltará a Europa a viver em “estado de paz”? Para Volodymur e Lyudmila, aos 72 anos, a incógnita é bem mais simples: no tempo que lhes resta, que não sabem quanto, voltarão a abraçar os filhos?

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REUTERS/Serhii Hudak

Começou no dia 24 de Fevereiro de 2022. Todas as evidências de que estava em marcha a maior ofensiva a um Estado europeu antecipavam uma guerra, mas muitos de nós acreditámos que tal não seria possível. E neste “nós” incluo-me a mim, certa das virtudes da diplomacia e crédula de que esta última via prevaleceria sobre a outra que se adivinhava, da destruição e da morte. Incluo, também, os avós dos meus filhos mais novos, incapazes de supor que lhes passaria pela vida mais uma guerra declarada, muito menos na sua pacata cidade de Melitopol, talvez por serem eles próprios filhos de pais que lutaram de vermelho noutra guerra e de mães forçadas a trabalhar para o esforço de guerra da Alemanha nazi.

Hoje, quase quatro meses depois, Melitopol mantém-se como cidade ocupada. Volodymur e Lyudmila continuam lá, sitiados, no sul da Ucrânia, nessa pequena parte de Zaporizhzhia. Os filhos, menos um tormento, já a diáspora os tinha levado. Seguem, assim, sozinhos, pondo ao serviço da sua sobrevivência diária a humildade e a resiliência que ganharam de muitos recomeços: Moscovo, Khabarovsk, Vladivostok, Anapa, Novoshakhtinsk, Krasnodar, Simferopol, Volgogrado, Kiev, Odessa, Kherson, Mykolaiv, Kharkiv, Lviv, Vinnytsia, Mariupol, Dnipro, Donetsk e, finalmente, Melitopol. Circunscrever a sua condição, história de vida longa e identidade à etiqueta de “russófonos” é muito pouco.

Além disso, essa etiqueta tem induzido a um segundo grande equívoco: o de confundir um déspota, Putin, com o povo da Rússia, e com a própria Rússia e os seus legados, ou não tivesse havido, entre tantos outros, Tchekhov, Soljenítsin, Kandinsky, Tchaikovsky ou Tarkovsky.

Em Melitopol, a vida prossegue dentro de uma “aparente normalidade” e o problema das guerras que se “normalizam” é o esquecimento. Da Síria, em guerra civil desde 2011, perdemos o rasto. Sobre o que se passa no Iémen, em guerra civil desde 2014 até à trégua de paz iniciada em Abril deste ano, sabemos pouco, ainda que os números estimados pelas Nações Unidas sobre os efeitos do conflito sejam demolidores: 377 mil pessoas mortas, entre as quais 144 mil crianças, com o país “à beira da catástrofe” devido ao crescente número de pessoas que sofrem de fome, que alcançará um número recorde de 19 milhões até ao final deste ano. Sobre o conflito no Tigré, na Etiópia, sabemos ainda menos.

Acresce que o tempo dos media dedicado à guerra passou a rivalizar com o tempo dedicado à antecipação das suas consequências económicas: inflação, o maior aumento no custo de vida de uma geração, disrupção de cadeias de abastecimento, crise alimentar, crise energética, abrandamento das economias, recessão generalizada, privação, fome e sofrimento humano, com maior impacto, como sempre, nos países mais vulneráveis e mais pobres.

No século XVIII, vaticinava Kant, no seu opúsculo seminal A Paz Perpétua, que “o espírito comercial não pode coexistir com a guerra. Porque entre todos os poderes (meios) subordinados ao poder do Estado, o poder do dinheiro é decerto o mais fiel, os Estados vêem-se forçados (não certamente por motivos da moralidade) a fomentar a nobre paz e a afastar a guerra mediante negociações”. O juízo de Kant sobre o vínculo entre o “factor comercial”, ou a interligação simbiótica das nações por essa via e a promoção da paz, falhou. E na lógica inversa, para conter um futuro de desordem económica, haverá motivos da moralidade para acabar a guerra? Prevalecerão os valores da razão? Voltará a Europa a viver em “estado de paz”?

Para Volodymur e Lyudmila, aos 72 anos, a incógnita é bem mais simples: no tempo que lhes resta, que não sabem quanto, voltarão a abraçar os filhos?

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