Porto
Um mergulho nas ilhas de São Victor, nas “entranhas” do Porto
Na rua de São Victor, no Bonfim, existem mais de 20 ilhas — conjuntos habitacionais historicamente associados ao operariado do século XIX. Carlos Menezes quis conhecer quem ainda habita a Ilha do Galo Preto, a Ilha do Doutor, da Tapada e Zé do Afonso. “Existe um sentimento geral, nas ilhas, de que São Victor está lentamente a perder a sua identidade.”
Nas entranhas do Porto, no interior dos seus quarteirões, permanecem, desde meados do século XIX, os conjuntos habitacionais que os portuenses denominam de “ilhas”. São quase invisíveis a partir das ruas e travessas da cidade. Quem por elas passa, vê apenas um portão embutido numa parede — quase sempre fechado, acessível apenas a moradores. Para lá dessa abertura, ao longo de um corredor estreito ou em torno de um pátio comum, estendem-se pequenas casas geminadas, tipicamente com menos de 20 metros quadrados de área. As habitações, filhas do improviso, conhecidas pelas fracas condições de habitabilidade que ofereciam, surgiram para albergar “à pressa” uma população de origem rural que migrou para o Porto em busca de trabalho nas fábricas, há mais de um século.
Essa população migrou e, em muitos casos, por lá ficou. No Porto encontrou trabalho, constituiu família — tornou-se portuense. No início do século XX, as ilhas eram a casa de 50 mil pessoas. Hoje, em 2022, ainda há dez mil a viver nestas pequenas estruturas — cerca de 5% dos habitantes da cidade. A maioria dessas casas, cerca de 70%, encontra-se em “mau” estado de conservação ou “em ruína”; a maior parte das ilhas continuam a ter inquilinos (89,6%), embora em número cada vez mais reduzido (só 56,9% das fracções disponíveis estão habitadas).
O fotógrafo Carlos Menezes dedicou três meses, entre Abril e Junho, ao registo do quotidiano de quatro ilhas da Rua de São Victor, no Bonfim (onde elas são mais de vinte): a Ilha do Galo Preto, do Doutor, da Tapada e Zé do Afonso. O que mais o impressionou, contou ao P3, foi a falta de movimento nas ruas e nos poucos cafés que resistem. “Só encontrei três pessoas juntas durante os preparativos para o São João”, garante. “Não existe muita fala entre vizinhos. Não se vê crianças, apenas população idosa, que vive saudosa das visitas da família.” Vê-se, sim, cada vez mais turistas, como, aliás, no resto da cidade. “Existe um sentimento geral, nas ilhas, de que São Victor está lentamente a perder a sua identidade.”
O trabalho do estudante finalista no Instituto Português de Fotografia, intitulado Condomínio Fechado, tem foco nas pessoas destes lugares e não na sua arquitectura ou nos mais recentes desenvolvimentos no que toca a programas de reabilitação. Importam, para Carlos Menezes, as vidas de Óscar, “o atleta de 82 anos que ainda corre a meia-maratona”, de Quitéria, de Franquelim, de Rosa, Maria de Lurdes, do octogenário Domingos, “cujo galo de estimação faleceu recentemente” ou do tipógrafo António. “Quase todos falam de saudades, dos filhos, dos netos que pouco ali vão.”
Carlos observou que “na pequena comunidade existe o espírito de amizade, de solidariedade, boa relação de vizinhança e empatia”. Mas que os moradores vivem cada vez mais sozinhos. “Não querem sair das ilhas”, sublinha, “querem lá ficar porque foi lá que nasceram”.