A violência doméstica banalizou-se?
“Houve uma altura que tinha até medo de sonhar, não fosse ele vigiar os meus sonhos.”
“Uma rapariga muito divertida, a quinta de sete irmãs. Era trabalhadora e estudante quando conheci um rapaz e me apaixonei. Após um namoro de três anos, engravidei e casei. Mãe de duas filhas lindas, suportei, durante 23 anos, um casamento em que a violência foi uma constante. Fugi da casa onde vivia, no Alentejo, com a roupa que tinha no corpo para me refugiar numa casa abrigo de apoio às vítimas de violência doméstica em Lisboa, cidade que só visitara duas vezes. Ao fim de algum tempo, consegui trabalho como empregada doméstica interna, a melhor opção para não ser encontrada...”
O texto anterior é parte da mensagem que Maria (nome fictício) enviou a este escriba através de uma rede social, resumindo a sua história de vida. Eu não a conhecia — apenas havíamos trocado algumas mensagens de circunstância após uma palestra em que participei — e fiquei surpreendido com a revelação espontânea.
Habitualmente, as pessoas contactam-me para desabafar ou pedir ajuda sobre o sofrimento causado por doenças, suas ou de familiares próximos, ou pela perda de familiares e amigos. Quando respondi à mensagem de Maria, manifestei a minha solidariedade e desejei que tudo lhe corresse pelo melhor. Contudo, logo após enviar a resposta, senti que havia dito pouco face à intimidade, profundidade e gravidade da partilha. Senti ainda que poderia ser uma oportunidade de fazer alguma coisa, através desta ferramenta da escrita, pelos milhares de mulheres que são alvo de violência doméstica, tanto física quanto psicológica, em Portugal. A denúncia é uma forma de luta. E foi por isso que, alguns dias depois, contactei Maria propondo-lhe que me contasse a sua história em pormenor.
Após dezenas de emails, comecei a escrever um livro sobre a história de Maria, uma rapariga que cresceu no seio de uma família alentejana numerosa e muito feliz, período que revisito pormenorizadamente, de forma a criar um contraste entre uma infância plena de alegria e felicidade e aquilo em se tornou a sua vida depois de se ter apaixonado pelo rapaz com quem acabaria por se casar.
A história oscila entre ciúme e amor, momentos de alegria e acessos de fúria e violência, desespero e esperança, mostrando que todos somos filhos das circunstâncias, do meio, da educação, dos hábitos adquiridos e da hereditariedade, e que tudo isto molda o que somos e como seremos durante as nossas vidas. Diversas personagens, também elas reais, com histórias duras e de certa forma estereotipadas, conferem contexto ao drama de Maria, levando-nos a penetrar profundamente, em primeiro lugar, numa sociedade rural muito hierarquizada, marcada pela violência doméstica e, amiúde, pela pedofilia clerical, e, depois, no duro contexto citadino da toxicodependência, sempre com a violência como pano de fundo. As vítimas são muitas e os piores dos agressores poderão eles próprios ter sido também vítimas...
Maria, uma mulher pueril, mas ao mesmo tempo calejada pela vida, partilha o drama psicológico que viveu durante o exercício quotidiano da violência e as fúrias inesperadas do marido. “Houve uma altura, não sei se lhe contei, que tinha até medo de sonhar, não fosse ele vigiar os meus sonhos. Era uma parvoíce, claro, até porque isso não é possível e ele ressonava a noite inteira, mas sabe como são estas coisas, a pessoa quando tem medo já imagina tudo, já acha que tudo é possível”, descreve Maria, a quem o medo governou todas as ações até ter percebido que a única pessoa capaz de lhe trazer paz era ela própria.
Não corram a procurar o livro na internet ou nas livrarias, pois não existe senão no arquivo do meu computador, numa cópia em papel que guardo a sete chaves e, caso não tenha sido apagado, nas caixas de email de algumas editoras a quem enviei o manuscrito. E não tentem encomendar, pois não há perspetivas de publicação. Eu explico: uma das editoras que contactei apresentou-me uma ideia grotesca para o livro e recusei; outra, esclareceu-me que o planeamento para 2022 estava fechado e que voltávamos a falar para o ano; outra, considerou que o livro precisava de muita edição e que por agora não tinha tempo; outra, não respondeu.
Nota: sou apenas um dos milhares de candidatos que busca, por carolice e paixão, publicação de um livro e, em momento algum, pretendo julgar os critérios de escolha dos editores, os quais respeito, até porque é seu o investimento financeiro — não pondero a auto publicação —, bem como a estruturação das estratégias. Obtive ainda outras duas respostas, que, voilà, são a razão de ser desta crónica e que cito parte para melhor entendimento: “Não temos a certeza de que um livro sobre violência doméstica e que aborda a pedofilia clerical seja algo que as pessoas procuram. São temas delicados, como o João sabe, mexem com muita coisa…”. “Sei, sim. Foi por isso que os abordei”, apeteceu-me responder. Não o fiz. Optei por um diplomático “obrigado pela atenção dispensada”. A segunda resposta rezava assim: “A violência doméstica é um tema muito batido, caiu na banalidade”. Respondi com um “copy-paste” da resposta anterior.
Entre janeiro e junho deste ano, foram assassinadas em Portugal 16 mulheres em contexto de violência doméstica, tantas quanto no ano passado. Só em junho, seis mulheres foram assassinadas, o que equivale a uma mulher assassinada a cinco dias. É propositada a repetição da palavra “assassinadas”. Habitualmente, leio ou oiço “morreram”. Talvez seja um sintoma da “banalização”. Podemos alegar que, na prática, uma mulher morre quando é assassinada, pelo que é igual dizer uma coisa ou outra. Não é.
As palavras servem para identificarmos e definirmos coisas e situações. A palavra assassinada significa, numa definição simplista, “matar à traição ou violentamente”. E foi isso que aconteceu a 16 mulheres em seis meses: foram assassinadas. 70% das vítimas viviam, ou já tinham vivido, uma relação pautada pela violência. 53% dos assassinatos foram cometidos por ex-maridos ou ex-companheiros.
Quando estes números foram divulgados, ouvi uma especialista em criminologia referir que se tratavam, na sua maioria, de casos sinalizados em que o sistema falhou (uma delas utilizou até o botão de pânico virtual). Pois falhou. E falhou porque é brando. Passemos em revista algumas das medidas de coação que podem ser aplicadas a um agressor: entregar as armas que tiver, sujeitar-se a frequentar programas para arguidos e não permanecer na residência onde o crime tenha sido cometido ou onde habite a vítima.
Como se isso os impedisse de lá voltar, como amiúde constatamos. Para os impedir de o fazer, e ainda na fase de inquérito do processo, está prevista a utilização de meios técnicos de controlo à distância (pulseira eletrónica) em casos de avaliação de risco elevado. Mas a pulseira eletrónica não é utilizada tantas vezes como devia. Como provam os 16 assassinatos cometidos só este ano. E tantas vezes como devia seria em 100% dos casos. E ainda assim… Depois, há a questão das suspensões provisórias dos processos e os julgamentos com penas até cinco anos de prisão, que podem ser suspensas na sua execução, o que é o que normalmente sucede, sendo irrisório o número de condenações.
“A violência doméstica é já um tema muito batido, caiu na banalidade”. Terá o editor razão?
A justiça não está a conseguir passar a gravidade da situação doméstica, o que só será conseguido com a criminalização acrescida dos crimes e o aumento das penas. Aliás, a violência doméstica parece servir de atenuante a crimes com um quadro legal próprio. É que se um homicídio em Portugal pode representar uma pena de até 25 anos, o assassinato em contexto de violência doméstica é punido com uma pena de entre três e dez anos. Também alguns meios de comunicação social podem e devem fazer mais. Não se fala o suficiente deste flagelo. Somos ainda um país machista e com vergonha de assumir essa condição, um país que cala a verdade sobre os milhares de mulheres violentadas (e são também cada vez mais homens os violentados). Calando a verdade, estamos a deixá-la crescer. E a banalizar a violência.
Maria, à semelhança das personagens na mitologia grega, passou por uma katábasis, que simbolicamente pode significar uma descida ao inferno, de onde, felizmente, emergiu. E emergiu com a convicção de que tudo o que pensava saber sobre o amor era falso. As marcas da descida ao inferno, que quase a destruiu e a transformou para sempre, estarão bem presentes até ao fim dos seus dias. Choro o seu sofrimento e homenageio aqui a sua escalada rumo a um renascimento parcial.