No Tapada de Coelheiros, o Chardonnay foi à vida
E em sua substituição entram as castas Arinto e Roupeiro. É uma pequena revolução numa marca que foi famosa, hibernou em excesso, mas que agora regressa em boa forma.
Beber um Tapada de Coelheiros nos anos 90 era coisa que quase exigia gravata e o domínio de um certo linguajar francês. Por causa das castas e por causa dos processos enológicos, tudo o que vinha desta herdade, cuja primeira referência histórica remonta ao século XV, tinha influências de Bordéus (só o rótulo com a arte das tecedeiras de Arraiolos dava um sotaque alentejano aos vinhos). No caso do Tapada de Coelheiros branco a receita era Chardonnay com fartura e fermentação em barricas novas de carvalho francês de 225 litros. Naquela altura, contavam-se pelos dedos de uma mão os enólogos que trabalhavam assim (David Baverstock, Nuno Cancela de Abreu, Manuel Vieira, Paulo Laureano e, no caso de Coelheiros, António Saramago), mas toda a gente adorava os vinhos que misturavam os aromas das borras finas e as notas de manteiga, avelã e maçã, com a boca sempre untuosa e gorda. Era um mundo novo.
Passados cerca de 30 anos, essa moda já passou — e nem é de agora —, o que não deixa de ser curioso quando estamos a falar de um produto alimentar cuja base da matéria-prima — a vinha — demora tempo até atingir a sua plenitude. E que levanta a seguinte questão: se o mundo do vinho vive de modas e se hoje andamos apaixonados pela acidez vibrante (com castas e clones específicos), quais serão as tendências daqui por dez, 15 ou 20 anos? Vamos ter de arrancar e plantar tudo de novo? É uma bela dor de cabeça para os produtores de todo o mundo. Enfim, todo o mundo é um exagero, porque os franceses não alinham nisso. Sabem que as modas existem, mas adoptam a velha técnica que é esperar com calma que desapareçam porque, mais cedo do que tarde, tudo regressa ao padrão francês. Como descendem de Luís XIV, gostam de pensar que ‘a moda somos nós e os outros que se adaptem’.
Regressemos agora ao Alentejo para recordar que, depois do apogeu nos anos 90 e na primeira década deste século, a Herdade de Coelheiros desapareceu do mapa, até que, em 2015, Alberto Weisser, brasileiro de ascendência alemã e homem do mundo por causa da gestão de multinacionais no ramo alimentar, apaixonou-se pelo microcosmos rural que é a herdade de 800 hectares na Igrejinha, onde a vinha ocupa apenas 50. O resto é montado, nogueiral, umas linhas de oliveiras e pastagem para ovelhas, gamos e javalis.
Como é da natureza das coisas, Alberto, que vive entre Nova Iorque, Singapura e Lisboa, dá-se tu cá tu lá com os mais afamados vinhos do mundo, pelo que o facto de haver castas estrangeiras na propriedade e o facto de saber que um Tapada de Coelheiros era uma coisa séria no Brasil foram detalhes que contribuíram para tomada de decisão da compra.
Sucedeu que, ao contratar Luís Patrão para a nova fase do projecto, este explicou-lhe que não só as vinhas de Chardonnay estavam nos cuidados intensivos como aquilo que fazia sentido era abrir uma nova página da história vitícola da herdade com castas portuguesas aptas a defrontar as alterações climáticas. Quais? Arinto e Roupeiro. Alberto ficou inicialmente indeciso, mas acabou por aceitar a tese do enólogo porque está habituado a delegar responsabilidades naqueles que contrata.
Alberto é aquele indivíduo que faz perguntas sobre tudo e mais alguma coisa. No dia de fechar o negócio da herdade, almoçou na Taberna Típica Quarta-feira, em Évora, onde, numa qualquer mesa, estava João Paulo Martins. Quem acompanhava o empresário brasileiro soprou que aquele era — e é — a referência nacional na crítica de vinhos. Alberto não foi de modas e apresentou-se, perguntado ao jornalista se conhecia a herdade e que impressão tinha dos seus vinhos. Desconhecendo a figura, mas conhecendo bem a realidade da Herdade, João Paulo despachou o cavalheiro dizendo que, sim senhor, os vinhos eram bons e tal e lá continuou a desviar as espinhas de uma qualquer açorda de bacalhau que fria não tem piada alguma. Tempos depois o jornalista ficou a saber que o cavalheiro com sotaque exótico era o novo dono da Herdade de Coelheiros. “É. Eu faço muita pergunta e todo o mundo me dá conselhos. Mesmo os jornalistas. E sabe qual é o problema? É que vou atrás e faço”, disse esta semana Alberto Weisser, em Lisboa, durante a apresentação no novo Tapada de Coelheiros Branco 2019, que serviu para a equipa de enologia e viticultura comunicar o está a ser feito para que as próximas colheitas resultem de modos de produção que juntam as regras da agricultura biológica, da agricultura regenerativa e até desse universo esotérico que é a biodinâmica.
A passagem para modos de produção sem produtos de síntese e que “utilizem a própria natureza como auxiliar é algo que exige tempo": “Podemos conhecer as técnicas padrão, mas precisamos de tempo para perceber como é que elas se adaptam às diferentes culturas da herdade. Mesmo dentro de uma cultura — imaginemos a vinha — a abordagem que damos a cada casta ou a cada área de vinha, a cada tipo de solos ou exposição é diferente. Fazer com que tudo isto funcione leva tempo. Depressa, não dá certo”, diz João Raposeira, o responsável da área de viticultura, que anda a plantar, junto às vinhas, medronheiros, rosmaninho, sabugueiros, pilriteiros, madressilvas e murtas, tudo para atrair auxiliares que controlem as pragas. Com tanta flor na herdade, Alberto já está a imaginar o perfume do mel de Coelheiros que um dia nascerá.
Quanto à nova linha de vinhos, haverá apenas quatro chancelas: O Tapada de Coelheiros como topo da casa, o Coelheiros como entrada de linha, o Vinha do Taco para castas que se destacam em determinadas colheitas e o Garrafeira. Tira-se o chapéu a uma estratégia que se decora em dez segundos.
Como, em 2015, encontrou as vinhas em mau estado, Luís Patrão teve de esperar até 2019 para encontrar o perfil de branco que, em seu entender, trará para a ribalta a marca histórica. O Arinto e o Roupeiro arrancaram a fermentação em inox, passaram para foudre (tonéis ovais), onde ficam durante 12 meses e, de seguida, seguem para outro ano de estágio em garrafa. Como as madeiras de grande volume são de segundo ano e como o vinho descansou com calma na adega, nota-se que houve a preocupação de entregar ao consumidor um vinho com alguma complexidade que, todavia, vai continuar a afirmar-se em garrafa caso os consumidores guardem garrafas. Como de costume, o ideal é provar o vinho agora, registar tudo na memória, e regressar a outras garrafas da mesma colheita daqui por dois ou três anos.
De resto, a nova estratégia da casa é apresentar alguns brancos com o maior tempo de estágio possível. Dez anos, por exemplo, coisa que ficará entregue à marca Vinha do Taco, que já tem um Arinto a descansar na adega. Quem pode, pode. E os consumidores de bom gosto agradecem.
A Herdade de Coelheiros esteve em hibernação longa, mas ressuscitou mais portuguesa, cheia de garra e com novas abordagens. Será desafiante acompanhar o processo.
P.S.: Durante a apresentação do Tapada de Coelheiros Branco 2019 decorreu uma vertical com vinhos de perfil antigo das colheitas de 1999, 2007 e 2011. Desses vinhos daremos notícia num artigo em preparação sobre vinhos brancos com idade.
Nome Tapada de Coelheiros Branco 2019
Produtor Tapada de Coelheiros
Castas Arinto e Roupeiro
Região Alentejo
Grau alcoólico 13,5 por cento
Preço (euros) 30 euros
Pontuação 92
Autor Edgardo Pacheco
Notas de prova Há aqui um interessante pingue-pongue entre fruta cítrica, ligeiro floral, certas notas de pastelaria e mineralidade. Tudo num registo subtil. Na boca, delicadeza, bom equilíbrio entre estrutura, álcool e acidez e bom trabalho do foudre (tonel oval). Apesar de já não haver Chardonnay, continua a ser um vinho com perfil internacional.