Em Cabrela, reabrir a escola será o mais bonito dos poemas

No dia em que conseguirmos reabrir a escola, estamos a conseguir inverter tudo aquilo que está a acontecer no interior do país, nas vilas e aldeias, que é um despovoamento crescente.

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Ciclo A Voz dos Livros, na Casa das Letras de Cabrela DR

“Quem é o maior fingidor no meio disto tudo? O ficcionista ou o poeta?”, desafiou a jornalista Ana Daniela Soares no início do debate entre o escritor João de Melo e o poeta Luís Natal Marques, iniciativa integrada no ciclo A Voz dos Livros da Casa das Letras de Cabrela. “Como dizia Pessoa, ‘O poeta é um fingidor. Finge tão completamente que chega a fingir que é dor a dor que deveras sente’”, citou o escritor. “A definição de ficção é a de que é uma arte que imita o real. E eu acho que quanto mais vivemos, mais duvidamos. Eu escrevo em fuga da realidade que vivi ou que observei. E isso para mim tem uma enorme utilidade, pois é uma espécie de vingança das maldades que fui vivendo. Tenho 73 anos e nunca quis ter 73 anos, queria ficar ali pelos 47, 48, e é a literatura que fixa, de alguma forma, esta marcha do tempo. A ficção é, primeiro que tudo, uma criação de linguagem. Quanto à poesia, devo confessar que guardo dúzias de poemas que não me atrevo a publicar, mas quando escrevo um poema não estou a fingir nada, estou a fazer uma catarse”, acrescentou João de Melo.

Num canto da sala, eu registava as palavras do escritor no telemóvel. Que me tenha apercebido, fui a única das 70 alminhas que utilizou o telemóvel durante a sessão. Um bom sinal e que contraria um estudo recente sobre a adição às redes sociais que concluiu, entre outras coisas, que a maioria das pessoas não consegue ficar mais do que cinco minutos sem checar as notificações ou fazer um pouco de scrolling. Checar e scrolling, dois verbos que aceitámos sem resistência no nosso léxico, esquecendo que «verificar» e «deslizar» servem idêntico propósito. Apenas mais um sinal de que nos tornámos numa civilização tecnológica, que somos viciados tecnológicos, viciados em rotinas mecânicas e estéreis, dependentes de qualquer espécie de distração que nos permita fugir da relação com nós próprios.

O sentimento de culpa por ser o único de telemóvel na mão no salão da Associação de Reformados Pensionistas e Idosos da Freguesia de Cabrela quase me fez levantar da cadeira para esclarecer que o bloco de notas e a caneta que trazia comigo repousavam no fundo de um arrozal.

A caminho da pequena freguesia do município de Montemor-o-Novo, parei para fotografar as cegonhas e, ao tirar o telemóvel do bolso, caneta e bloco (onde constava o diário de um périplo recente pelas encostas do Douro) mergulharam para nunca mais emergirem.

A dada altura da sessão, o telemóvel ficou sem bateria e eu sem forma de registar fisicamente o que ouvia. Ao guardar o desmaiado aparelho no bolso, imaginei o bloco de notas e a caneta no fundo do arrozal a rirem às gargalhadas.

No momento em que escrevo, valho-me da memória, com os riscos que isso acarreta, para relatar o que vi e ouvi. Perdoem-me eventuais lapsos e omissões. Em contrapartida, asseguro-vos a veracidade do miolo e dos sentimentos partilhados. “Todas as verdades vem ao mundo pela boca dos poetas. O Homem é algo que vai para além das suas tarefas do dia-a-dia, constrói-se em camadas por cima disso. A escrita, mais a poesia do que prosa, será uma catarse e outra forma de expressar preocupações que vão para lá da vidinha”, declarou o poeta Luís Natal Marques em resposta à pergunta introdutória. E esta leitura, tão simples e ao mesmo tempo tão bela e profunda, do que é a poesia, gravou-se na minha memória como se cinzelada na pedra.

Pedra. Tanto nos contam as pedras.


Dias depois, a partir do palco do teatro romano de Mérida, observei em silêncio as bancadas que se erguiam à minha frente e imaginei que algumas centenas de pessoas me observavam em silêncio. “O Homem é algo que vai para além das suas tarefas do dia-a-dia, constrói-se em camadas por cima disso”, declamei, citando Luís Natal Marques. E todos os rostos silenciosos se abriram num espanto meditativo, soltando um “oh” arrastado. Como por magia, toda aquela pedra empilhada fez sentido. Sorri com drama para as estátuas decepadas atrás de mim e corri entre as colunas em direção ao anfiteatro, onde os gladiadores me aguardavam. Ainda com os gritos de “mata, mata” e “salva, salva” a ecoarem nos meus ouvidos, iniciei uma caminhada pela cidade espanhola do norte da província de Badajoz, a escassos 80 quilómetros de Elvas, e imaginei Caio Júlio César Augusto (fundador da cidade, em 25 a.C.) nauseado com a aberração urbana em que Mérida se tornou: construções desordenadas, vulgares e pavorosas cobrem belíssimos edifícios seculares, repletos de história e de histórias. Como foi possível ter-se chegado a este ponto?, questiono-me, relembrando as dúvidas de João de Melo: “Eu acho que quanto mais vivemos, mais duvidamos”. Perturbado, refugiei-me na La Selva Dentro, uma pequena livraria decorada com motivos selvagens. Folheei um par de livros e dirigi-me ao balcão. Assumindo ser um turista mal preparado, perguntei por um guia.

– Não temos. Saem muito pouco – explicou-me o simpático livreiro, creio que algo desiludido com o facto de eu procurar um guia e não um livro.

– E livros, vendem-se?

– Ah, isso sim, muitos!

– A sério?! Quem os compra?

– Toda a gente, mas sobretudo adolescentes. Depois da pandemia, houve uma explosão de leitores e de livros. No ano passado, por exemplo, publicaram-se 50 mil livros em Espanha.

Apertei-lhe a mão e perguntei-lhe o nome.

– Mário Quintana – disse-me, enquanto me entregava um cartão azul com a imagem de um elefante, o símbolo da La Selva Dentro.

– Estás a brincar?

– Não, é mesmo Mário Quintana, tal qual o poeta brasileiro – insistiu, sorrindo.

À minha frente, tenho o cartão com um elefante que recita Emily Dickinson: “Para viajar lejos, no hay mejor nave que un libro”.


O leitor é o grande cúmplice com que a gente conta. Sem o leitor, o livro não existe. Infelizmente, em Portugal não há leitores. Desde logo, porque falha o modelo educativo. As crianças são colocadas a certa altura a ler As Viagens na Minha Terra, que é um livro difícil. E, pronto, ficam com a ideia enraizada de que a literatura é uma coisa chata, quando devia ser uma coisa apetecível. Sinto vergonha por isso. Como professor fiz o que pude. Por exemplo, no caso de As Viagens na Minha Terra só dava a novela da Joaninha. E em Os Maias fazia algo parecido, começava logo com o Carlos da Maia e a Maria Eduarda. E depois jogava com compensações. ‘Como vos facilitei a vida, agora vão ler mais um que vos vou sugerir’, partilhou João de Melo quando questionado sobre os hábitos de leitura em Portugal. Se não formos lá pela cultura, não vamos lá por outra coisa qualquer, e isso começa na escola, claro. Mas a escola é o que é... Por isso, o exemplo em casa também é importante. E a verdade é que também não ouvimos falar dos livros em lado nenhum, acrescentou Luís Natal Marques, sabedor que em Cabrela não é assim. Numa quente tarde de sábado, setenta pessoas ouviram um escritor e um poeta debaterem livros e leitura. Há esperança para os livros. Cabrela é um milagre, declarou João de Melo, maravilhado com a audiência.

Antes do início do debate, enquanto fotografava um quadro com quadras de autoria de Sérgio António da Silva, poeta da terra, senti um toque no ombro.

– Aqui há mais – disse-me o próprio autor, entregando-me um calhamaço.

Aproveitei os dez minutos que faltavam para o início da sessão para ler e, em jeito de homenagem, decorei uma décima intitulada Um sonho antigo: “De muito novo comecei / A ser louco por poesia / Um sonho que toda a vida sonhei / Ter um livro de minha autoria. E assim trouxe na memória parte do sonho realizado de Sérgio António da Silva. Falta agora cumprir-se o sonho da população de Cabrela, verbalizado por David Lopes, o criador e impulsionador de A Voz dos Livros: Passem a palavra das nossas iniciativas. O grande objetivo de tudo isto é trazer mais pessoas para viverem em Cabrela e se possível que essas pessoas tragam jovens e crianças, pois estamos a muito pouca distância de reabrir a escola. E, no dia em que conseguirmos reabrir a escola, estamos a conseguir inverter tudo aquilo que está a acontecer no interior do país, nas vilas e aldeias, que é um despovoamento crescente. É possível inverter essa situação.”

Reabrir a escola. E eu não me recordo de poema mais bonito, David.

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