“Este solo tem milhões de anos. Vem da altura do Jurássico. São aglomerados de pequenos organismos que se foram depositando no fundo do mar. Quando as montanhas do Jura, em França, se formaram. E nós conseguimos identificar aqui elementos que também se encontram nos solos do Jura. Este tipo de barro muito branco que é muito especial.” É um cativado Luís Patrão quem nos fala assim da terra que tem nas mãos, enfiado num buraco onde conseguimos ver o corte do solo que alimenta uma das videiras do Rexarte, a vinha dos Vadio que dá origem ao vinho homónimo e mais distinto deste produtor. A escassa distância da escola primária onde Luís estudou, na aldeia de Poutena, Anadia, região vitivinícola da Bairrada.
O enólogo aproveitou o Dia Internacional da Baga, no final de Maio, e a visita de jornalistas e outros interessados na matéria, para fazer o que há muito planeava: abrir um corte no terreno e espreitar o que se passa um metro e pico abaixo da terra. Luís e a esposa Eduarda Dias são a dupla dos vinhos Vadio. Ele faz os vinhos, ela trata de os vender e promover. É ela quem tem o projecto na ponta da língua, mas ouvi-lo falar da região, dos solos da Bairrada e da Baga é uma delícia.
O projecto familiar nascido em 2005 tem a adega porta com porta com a loja de produtos agro-químicos onde o pai de Luís trabalhou 40 anos. Uma curiosa circunstância quando falamos de um produtor que tem as vinhas em produção biológica, tem uma estação meteorológica para apoio e todos os anos analisa a matéria orgânica das suas parcelas. Mas que explica, no entanto, a extensão do “lobby” que Dinis Patrão tem conseguido fazer nos últimos anos para que o filho e a nora conseguissem chegar... aos 9 hectares de vinha! “São seis de Baga e o resto Bical e Cercial, e para juntar isso comprámos a 30 pessoas. Parece pouco, mas para a Bairrada é muito. A vinha é quase um membro da família aqui. Às vezes são 3.000 metros quadrados e demora anos”, explica Eduarda. As vinhas do Rexarte, do Fojo e da Calçada estão no Vale de Dom Pedro, “onde há 200 hectares e mais de 300 produtores”. “Nós somos os únicos que engarrafam com marca. Isso é um pouco o que a Bairrada é”, sublinha a gestora. É como fazer uma manta de retalhos com os tecidos que se vai arranjando.
Há muito que Luís e Eduarda sonhavam entrar para o “clube” dos Baga Friends, o convite surgiu em Abril junto com o desafio para participar na programação do Dia Internacional da Baga – as adegas estiveram de portas abertas, houve provas e outras iniciativas a decorrer, numa festa que os Baga Friends querem repetir todos os anos de ora em diante. “Até agora éramos friends dos Baga Friends. Como dizemos no Brasil, subimos na vida”, brinca Eduarda, que é brasileira, filha de imigrantes de Lafões, no Dão, importadores de vinho de todo o mundo no país do samba. Chegou a Portugal com 19 anos. Quando viaja, conta, “não há um lugar do mundo e um escanção que não saiba o que é a Bairrada e a Baga”.
Ainda se lembra de ninguém querer provar vinhos de Baga e de a exportação representar para o Vadio 90 por cento. Hoje está nos 80, os outros 20 por cento ficam no mercado nacional. “É uma honra fazer parte de um grupo que nós consideramos os melhores produtores da região. Para trocar práticas. O projecto Vadio continua a ter a mesma essência. Começámos com meio hectare. O objectivo é sermos auto-suficientes. Nos Baga Friends vemos entreajuda, amigos.”
Dos 9 hectares de vinha que têm, produzem 50 mil garrafas por ano, dessas 10 mil são de espumante. De Baga tranquilo são 30 mil. Do seu portefólio fazem parte os tranquilos Vadio Clássico, branco e tinto, Grande Vadio, tinto, feito a partir da selecção de uvas das melhores parcelas, e o Vadio Rexarte, um vinho tinto de “terroir, em zona de transição entre areia e argilocalcário”, descrevem. A Baga no argilocalcário dá vinhos densos, concentrados, a areia torna-os mais elegantes e frescos, ao que parece. Produzem também dois espumantes, um rosé e um solera. Este estilo é muito afamado na região de Champagne: ao vinho-base, a estagiar em barricas, é adicionado todos os anos vinho da mais recente colheita; o objectivo é manter uma constância no tempo, independentemente de como corre cada campanha.
O bom filho a casa torna
Luís cresceu e viveu em Poutena até aos 18 anos, o pai é de Chipar de Cima, também em Anadia. Estudou Enologia na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, em Vila Real. Aos 15 entrou numa adega para trabalhar, mas o vinho esteve sempre presente em casa. “Somos uma família clássica bairradina. Cresci neste ambiente. Durante as minhas férias de Verão, fui para a adega cooperativa trabalhar onde o meu pai entregava as uvas”, conta. Aos 18, “não queria saber de livros, tinha uma banda, tocava piano, e queria era saber de música”. Mas a vida e a Bairrada lá o encaminharam para Enologia. “A partir do momento em que entrei, fiquei completamente apaixonado por isto.” Luís esteve no Esporão de 2003 a 2016 – “Era para ser um estágio de um mês, fiquei 13 anos.” Antes e durante esse período, fez estágios longos na Austrália e nos Estados Unidos. Desde 2016 que é consultor na Herdade de Coelheiros, dividindo a semana entre o Alentejo e a Bairrada.
Voltando à vinha do Rexarte, 2,5 hectares no tal Vale de Dom Pedro. “Todo o projecto nasce aqui. São 5000 metros quadrados. Era uma vinha velha, onde não havia grande selecção de castas. Em 2007 decidimos arrancar para plantar outra, nova. Não foi uma decisão fácil, mas foi racional, para fazer a viticultura que queríamos fazer.” Hoje, no Rexarte – nome de sempre, cuja origem nunca conseguiu esclarecer –, os brancos estão na areia e a Baga no argilocalcário. A 30 quilómetros em linha recta do mar e a 30 quilómetros da montanha, avistamos as aldeias e vemos floresta a rodear as vinhas, protegendo-as da brisa do mar. Nesse bosque, Eduarda e Luís querem colocar uma pequena cabana, para funcionar como sala de provas. Entre as vinhas e o bosque, vemos a última aquisição do casal: uma parcela de 1000 metros quadrados, conseguidos a ferros. A Bairrada é, não esquecer, uma região de minifúndio, onde “meio hectare por produção é a área média” e até ao aparecimento das adegas cooperativas “toda a gente fazia vinho em casa”. “O vinho era alimentação. Se sobrava, era vendido às caves”, conta o enólogo, sobre uma época em que as caves tinham a figura do juntador, que ia pelos produtores provar o vinho e o encaminhava para aquelas empresas, que por sua vez o “vendiam para as colónias”.
Viticultura de precisão e foco nos solos
Num terroir abençoado com “cerca de 1200 mililitros de chuva por ano” e com uma casta que é difícil na vinha, a viticultura é desafiante e obriga a um trabalho de precisão. No Vadio, não fazem mondas de cachos (cortar alguns cachos mais cedo para permitir que os outros amadureçam em melhores condições), mas mudaram a forma de condução das vinhas, para uma adaptação do Guyot, em cordão unilateral. Vinhas mais altas, onde os cachos ficam mais expostos, menos encobertos pelas folhas. Outra forma de controlar a humidade e o aparecimento de doenças. Outro caminho para fazer vingar a Baga.
A mudança na arquitectura da copa das videiras também tinha por objectivo antecipar a colheita da Baga. “Os brancos são vindimados na última semana de Agosto. A Baga é uma casta de ciclo tardio, mas quanto mais tarde maior o perigo da chuva. Tentamos vindimá-la até 15, 20 de Setembro. Quando o resto da região está a colher os brancos, nós estamos nos tintos”, explica Hugo Melo, braço-direito de Luís na vinha.
Para além dos caprichos da casta-rainha, há o solo, também ele difícil de trabalhar, seja pelo homem, seja pelas máquinas. “Quando está húmido, parece plasticina, quando está seco é altamente stressante. Abre frestas muito fundas, às vezes com três ou quatro metros de profundidade”, continua o responsável, que trabalhou mais de dez anos com Luís Pato e na infância foi colega de escola de Patrão. O solo começa a fendilhar, permitindo a entrada de calor. Voltamos ao início e a esse barro especial que a Bairrada tem. “São os únicos solos que conseguem automobilizar-se. Enriquece o solo [aportando-lhe oxigénio], mas é muito difícil de gerir”, releva Luís. A drenagem não funciona. E quando o argilocalcário seca, parece cimento e bloqueia a entrada de água.
É mesmo um trabalho minucioso. Que vai ao detalhe de escolher as plantas que vemos junto às videiras, leguminosas, que dão azoto e matéria seca que produz carbono, e gramíneas, que ajudam a trabalhar a estrutura do solo – as suas raízes fazem o trabalho que de outra forma teria de ser feito com uma alfaia, descompactam o solo para as plantas novas. Protecção ao solo, mobilização do solo, criar biodiversidade, tudo vantagens de um trabalho que reduz o trabalho necessário na adega e que tornou os vinhos Vadio mais elegantes nos últimos anos, acredita Luís. “No futuro, vejo-nos a trabalhar cada vez mais o conceito de vinho de terroir, a explorar as pequenas diferenças em cada vinha. E temos trabalhado para que toda a matéria-prima seja controlada por nós.”
Porquê Vadio? “Para provocar. Só isso. Eu tinha 23, 25 anos, e o mundo do vinho era muito formal, conservador. Ninguém fica indiferente ao nome Vadio numa prateleira, e lá fora também se entende, é curto.”