Rússia
De volta à URSS: serão assim os produtos russos após as sanções do Ocidente?
Um cesto que foi uma bola de basquetebol; um vaso feito a partir de um disco de vinil derretido. Em tempo de escassez de produtos, durante a vigência da União Soviética, reinava o improviso. Em 2022, o isolamento está de volta; voltará também o DIY?
A crise ou instabilidade económica e a escassez de bens e comida nas prateleiras dos supermercados não se afiguram diante dos cidadãos russos como algo de novo. Pelo contrário, essas são realidades bem conhecidas da população — e historicamente recentes. Durante a vigência do regime comunista, que encerrou a URSS em si mesma política e economicamente ao longo de quase sete décadas, a escassez de bens e produtos era comum. “Na era soviética, as pessoas eram impelidas a produzir coisas essenciais pelos seus próprios meios”, explica o artista russo Vladimir Arkhipov, ao P3. “O meu pai, por exemplo, construiu o próprio frigorífico.”
Após a liberalização da economia, aquando do colapso do regime comunista, em 1991, foram necessários quase dez anos até que fosse alcançada a estabilidade. Durante essa década, a escassez de bens e produtos continuou a afectar a Rússia. E sempre que existe escassez, refere Arkhipov, aguça-se o engenho e a criatividade e nascem verdadeiras geringonças feitas a partir de objectos improváveis. E é sobre essas, frutos da argúcia e do “desenrasque” russos, que versa o livro Home Made Russia, ao qual Arkhipov dedicou 11 anos da sua vida. “Sem qualquer apoio ou interesse do Estado”, sublinha. “Actualmente, na minha colecção, constam mais de mil itens e todos têm três características em comum: funcionalidade, singularidade visual e o testemunho do autor, que é seu criador e utilizador.” Os objectos que documenta são “parte da cultura popular” e vivem sob “constante ameaça de destruição”.
A reedição de Home Made Russia, pela Fuel Design, surge durante a invasão russa da Ucrânia — a primeira edição data de 2006. “Agora, na Rússia, existe concorrência e não há escassez de bens ou produtos (salvo algumas excepções). A maioria das pessoas ainda não sentiu os efeitos das sanções do Ocidente.” O livro coloca questões acerca do futuro da Rússia em isolamento. Estará o país diante de uma nova crise económica? Diante de um novo período de escassez? “As pessoas ainda sentem muito pouco o efeito do isolamento político e económico [do Ocidente]”, explica Arkhipov, via email, a partir da Rússia. “Não existe escassez de produtos, embora os preços estejam a subir. A maioria das pessoas continua a viver como se nada tivesse acontecido.” Ou quase nada.
De acordo com Arkhipov, muitos jovens continuam a alistar-se “porque o governo promete pagar-lhes muito bem se forem para a guerra e promete apresentá-los no país como heróis”. “A propaganda de Putin funciona muito eficazmente e apresenta sempre uma derrota como uma vitória.” A censura funciona activamente na Rússia, assegura. “Há exposições, projectos, concertos a serem cancelados após simples telefonemas de autoridades. Muitas pessoas que conheço pessoalmente estão presas ou foram multadas por escreverem publicações nas redes sociais ou por participarem em manifestações anti-Putin. Muitos dos meus conhecidos saíram do país porque foram ameaçados e perseguidos.”
A perseguição é particularmente dramática entre as camadas intelectuais e artísticas. “O Oeste está, incorrectamente, a quebrar contacto com os artistas russos, identificando-os com as autoridades. Um número muito significativo de artistas russos não apoia as acções de Putin, mas teme criticar abertamente o regime devido à ameaça de prisão e represálias.” Arkhipov nunca votou em Putin, não apoia as suas políticas e repudia a invasão da Ucrânia, não obstante foi marginalizado fora do seu país. “Eu tinha três exposições marcadas na Europa e o contacto com as organizações foi subitamente interrompido.”
Entre a maioria da população, afirma Arkhipov, a situação é diferente. “A maioria dos russos não está pronta ou disposta a assumir responsabilidade pelo que está a acontecer no país, a admitir erros ou a corrigi-los. Isto não é uma consequência de uma intenção maliciosa, mas sim de miopia, conformismo e falta de experiência na luta contra o mal intencional. As pessoas que desejam a paz são, hoje, reféns das ambições desadequadas do presidente. Irão aguentar as sanções, mas sem alegria, esperando que tudo se resolva por si.”
Home Made Russia é um projecto, um livro, que olha para o passado e coloca questões sobre o presente e o futuro da Rússia. O isolamento russo forçará milhões a conviver com uma nova crise económica, a enfrentar pobreza e escassez. E, quiçá, muitos tornarão a produzir objectos com as próprias mãos. “Putin é um criminoso e deve ser julgado”, afirma. “Nunca recebi quaisquer prémios ou louvores ou bolsas do Estado. Este projecto é puramente humanista e existe em oposição à política de imperialismo de Putin.”