E agora sai um Pinot Noir. Perdão! É Tinta Gorda

Este Palácio dos Távoras Tinta Gorda 2021, da Costa Boal e de vinhas velhas de Sendim, é mais um exemplo da riqueza que temos nas vinhas velhas. E sim, faz lembrar a grande casta da Borgonha.

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Palácio dos Távoras Tinta Gorda 2021, de Trás-os-Montes. DR

A crónica de Pedro Garcias na última edição do Fugas (Fernando Pessoa em flagrante delitro e o chamamento das origens) é uma bonita homenagem à mãe, às suas origens e à terra. E dá-nos jeito para falar deste Tinta Gorda da empresa Costa Boal, porque tudo vai dar à paixão pelas vinhas velhas e porque tudo se passa em Sendim, no concelho de Miranda do Douro.

Há uns anos (seis ou sete), a Comissão Vitivinícola Regional de Trás-os-Montes organizou uma viagem para jornalistas, que começou em Sendim, nas arribas do Douro, onde fomos recebidos pelo ilustre presidente da junta de freguesia, o professor José Almendra, que era aquele tipo de homem que fazia de conselheiro, de juiz, de contador de histórias e, caso fosse necessário, de padre. De resto, tinha um método curioso para dirimir conflitos: “Quando há um problema para resolver – e aqui eles aparecem com frequência – espero pelo final da missa e, no adro, meto as pessoas à conversa e lá se tenta chegar a um acordo”. Adiante.

O Pedro está habituado a ver vinhas velhas todos os dias, mas, em Sendim, quando descemos dos carros, ficou tão espantando a olhar para aqueles troncos retorcidos com dois palmos de altura, em terrenos cheios de pedra e com o Douro ao fundo, que desatou a fazer perguntas de toda a forma e feitio. Era Inverno e as plantas estavam a dormir, mas ele já imaginava o vinho que dali sairia. Cada um cria o seu código de conduta nesta vida e nós gostamos da ideia de que não se devem tomar decisões estratégicas quando se está muito feliz ou muito triste. De maneira que, olhando para o Pedro, só nos ocorria, em silêncio, o seguinte: esperemos que, como de costume, não haja rede neste fim do mundo para ele ligar à Cristina (a mulher); segundo, rezemos para que não tenha trazido o livro de cheques. E porquê? Porque uma vinha velha tem um efeito hipnótico naqueles que gostam de vinho com alma e da natureza. E pode fazer um homem perder a cabeça.

Veja-se o caso de António Costa Boal, que é o único produtor com um vinho de Tinta Gorda no mercado, criado a partir de uma vinha com um hectare, em Sendim, com cerca de 40 castas, algumas plantadas há 140 anos. António é um jovem produtor que tem vinhas em Trás-os-Montes, no Douro e no Alentejo, adquiridas nos últimos 15 anos. Faz vinhos com diferentes perfis, mas, por estes dias, confidenciou-nos o seguinte: “Se soubesse o que sei hoje, tinha apostado muito mais em vinhas velhas do que em vinhas novas”.

Já sabemos que não é pelo facto de uma vinha ser velha que dará necessariamente grandes vinhos, mas quando está bem cuidada ela é um poço de diversidade e complexidade. Quando se apercebeu da predominância da Tinta Gorda na vinha, o enólogo Paulo Nunes começou a puxar o fio à origem da casta na região, com leituras obrigatórias dos textos de Cincinato da Costa, para descobrir, entre outras coisas, que a casta por cá tinha alguma importância na região de Mirandela, onde se chamava Tinta Negredo, e que em Espanha leva o nome de Juan Garcia.

Apesar de estar sempre a investigar e de respeitar a história, Paulo Nunes tem um vício curioso: olha para as uvas, reflecte, e dá-lhes uma interpretação própria na adega. Sem dogmas e sempre com vontade de aprender, coisa que, em matéria de vinhos, requer tempo.

Assim, desengaça os cachos de Tinta Gorda e fermenta os bagos em barricas que funcionam em pé, como balseiros e sem um tampo. Quando a fermentação alcoólica termina, mantém o vinho em contacto com as massas durante um mês, controlando ao detalhe os eventuais de riscos. Retira o vinho, manda fechar as barricas e depois estagia-o nas mesmas.

É certo que a experiência do enólogo se resume a três vindimas, mas – e para justificar o título – podemos dizer que estamos perante um vinho especial e que, sim, faz-nos lembrar a tão badalada casta Pinot Noir, quer pela sua estrutura aromática, quer pela complexidade de boca (ninguém está a dizer que é um Borgonha, atenção). Quando a maioria dos produtores de Trás-os-Montes opta por imitar o Douro nas suas terras, abandonando castas como Bastardo e Tinta Amarela das vinhas velhas (Deus lhes perdoe), é bom saber que há quem valorize a diferença e peça o valor justo por esse trabalho. Cereja em cima do bolo, António Boal está a multiplicar a Tinta Gorda. Que outros produtores sigam o exemplo. Ganhamos todos.

Nome Palácio dos Távoras Tinta Gorda 2021

Produtor Costa Boal

Castas Tinta Gorda

Região Trás-os-Montes

Grau alcoólico 14 por cento

Preço (euros) 35 euros

Pontuação 94

Autor Edgardo Pacheco

Notas de prova Tinto aberto e bonito de cor, realça de imediato notas vegetais, frutos vermelhos (groselha e casca de uva ou de ameixa, morangos), erva caril e mineralidade. Tudo puro, tudo primário. Mas é na boca que encanta porque parece – como um típico Pinot Noir – que o vinho aparece por fases. Ora é vegetal, ora é acetinado, com bom balanço entre álcool e acidez. Como é que o vinho se vai comportar no tempo? Não sabemos, mas estaremos atentos.

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