De Santiago a Sines: A sul, tudo perfeito
No limite sul da região, o sol e a brisa marítima encontram-se para nutrir, fazer prosperar e diferenciar os vinhos nascidos junto à costa. O Verão dispensa pretextos para um passeio à beira-mar, é certo, mas aqui ficam algumas paragens obrigatórias para conhecer o que há de novo e o que, não sendo novidade, merece ser partilhado. Entre Santiago do Cacém e Sines há mesa farta, vinhos de carácter único e boas histórias para ouvir. Para que nunca faltem motivos para rumar ao Sul.
Contra praia, não há argumentos. Porém, rumo ao Sul, ainda antes de o Atlântico determinar o plano da viagem, Santiago do Cacém surge ao caminho como uma espécie de ritual de iniciação a um Alentejo híbrido, que é tanto da terra como do mar – e a ambos vai buscar os elementos da sua riqueza histórica, paisagística e gastronómica.
Das serras de Grândola, São Francisco e Cercal que a rodeiam, traz o borrego nas suas variadas formas, o cozido de grão, o porco preto, os enchidos, os queijos e as carnes de caça, assim como o mel e o pinhão, ingredientes-estrela da doçaria local. A proximidade do mar garante peixe e marisco sempre frescos, e logo ao lado de Santiago, a escassos 20 minutos de viagem, a Lagoa de Santo André fornece a enguia. Em ensopado, frita, em conserva ou caldeirada, é motivo de romaria nos primeiros meses do ano e tem honras de protagonista num festival anual.
Foi com a nobre missão de promover a gastronomia do concelho que Nuno Santos, nascido e criado em Santiago, traçou o plano do restaurante Mercado à Mesa, que abriu em 2015 numa antiga venda de peixe do mercado municipal. A ideia inicial era ter semanas temáticas dedicadas a pratos ou ingredientes locais, mas Nuno depressa percebeu que o segredo do sucesso não devia depender de datas e horas marcadas, antes da qualidade do produto. Dedicou-se, então, a desenhar uma carta focada quase exclusivamente naquilo que vem de perto.
Do polvo, que chega todos os dias do porto de Sines, à perdiz que recheia uma competentíssima empada, até aos vinhos locais e à doçaria – destaque-se o bolo de Santiago, original de Espanha e apadrinhado pela cidade pela ligação à Ordem de Santiago; e a delícia de batata-doce, uma receita da casa que acaba de ganhar entrada numa confraria de Grândola –, toda a matéria-prima tem origem a menos de 50 quilómetros do restaurante.
Na garrafeira há algumas excepções, mas, das mais de 60 referências na carta, um terço vem de produtores vizinhos. Gostos mais requintados deverão encontrar resposta na cave, onde estão guardadas as garrafas especiais.
Apetite aberto para os assuntos de Baco, antes de sair de Santiago, e depois de um passeio higiénico pelo Jardim da Quinta do Chafariz para admirar os portentosos sobreiros e pinheiros-mansos que assinalam o início do caminho de Santiago, não há como não reparar no esmagador de uvas à porta do antiquário Conde D’Avillez, que há coisa de meio ano estendeu o negócio a uma loja de vinhos e produtos regionais. Com uma variedade ainda tímida de títulos da Península de Setúbal, compensa simbolicamente a falha com uma garrafa de 9 litros de Periquita 1990, em exposição na frente de loja.
Um copo (ou sete) à beira-mar
Segue-se a N120 em direcção à Herdade do Cebolal, cujo nome é dito e repetido sempre que se fala de vinho local. Lá para os lados de Sol Posto, em Vale das Éguas, Luís Mota Capitão, quinta geração à frente da propriedade, faz por honrar o facto de o trisavô ter sido, conta, “o primeiro a fazer vinho na região”, numa altura em que ainda se desacreditava a plantação de vinha junto ao mar – em linha recta, o Cebolal está a 10 quilómetros da costa. Numa quase inversão do método de produção vigente, decide, em 2012, iniciar um processo de transformação agrícola que lhe permitiria seis anos mais tarde acrescentar ao já extenso portefólio da quinta os primeiros vinhos de intervenção mínima, menos alcoólicos e com menos sulfitos. A ideia não foi nova, antes um regresso à origem da produção, quando era preciso tempo e paciência para esperar pelo vinho.
Luís aproveitou para repensar a estratégia ambiental da quinta e não tardou a aplicar algumas mudanças: as cápsulas de plástico foram substituídas por cera de abelha, o vidro e os rótulos passaram a ser reciclados e recicláveis, e tudo desde o solo ao produto final, diz, deve aproximar a herdade de um sistema cada vez mais orgânico e auto-suficiente. Dos 85 hectares de terreno, apenas 23 são de vinha, estando os restantes ocupados por agro-floresta, que se faz valer dos seus próprios recursos para prosperar. Daí ser absolutamente justificável que entre as cepas se encontrem tremoços, ervilhas (que, pela riqueza em azoto, dispensam o uso de adubos), sobreiros, medronheiros e nespereiras para proteger as videiras da inclemência do sol e garantir nutrição ao solo, agora e no futuro. Como serão os vinhos da região daqui a 10 anos? Luís não sabe responder pela generalidade, mas os do Cebolal, acredita, irão beneficiar cada vez mais da brisa marítima, tornando-se mais puros, aromáticos e permeáveis a outras espécies. Mais leves e saudáveis, de certeza absoluta.
A quinta está aberta às sextas e sábados (por marcação) para visitas e almoços vínicos, com provas de seis a sete vinhos a acompanhar uma cocaria de javali, prato tradicional dos trabalhadores do campo, mas também galinha do campo ou cozido de grão, à sombra de uma oliveira centenária virada para a vinha. A adega, já com mais de 100 anos, foi ampliada e reconstruída à semelhança de uma casa típica alentejana e, além da loja e da sala de prova, vai albergar um museu agrícola da quinta.
Entretanto, são horas de o sol se pôr e onde melhor do que a Praia da Samoqueira, em Porto Covo, para assistir ao espectáculo? Os 30 minutos de distância desde o Cebolal até à costa fazem-se por um caminho secundário que o GPS entende ser o mais rápido, nem por isso o melhor – à chegada, a paisagem faz valer a pena o corta-mato.
Na aproximação do jantar, é preciso tomar decisões: apanhar a M1109 em direcção a São Torpes e parar no restaurante Arte e Sal para uma massada de peixe ou ir no sentido inverso para entregar o corpo, a alma e a fome à Herdade da Matinha, no Cercal? Num dia longo, sugere-se a segunda opção e avança-se directamente para aquela que será a casa de partida dos dias seguintes.
Uma casa na Serra
Podia ser só uma casa de turismo rural, mas a antiguidade – está de portas abertas há 25 anos – fez que a Herdade da Matinha crescesse para se transformar num dos cartões-de-visita do Alentejo litoral. O projecto de vida de Alfredo Moreira da Silva será sempre uma obra inacabada, no sentido em que não pára de crescer e de afinar o azimute, agora cada vez mais virado para a educação ambiental e a reflorestação do território.
Há quatro blocos de alojamento, entre uma casa típica alentejana, quartos para adeptos de surf, uma ala só para adultos, e ainda suítes familiares que se ajustam à medida do agregado, três piscinas exteriores, uma sala de yoga e o grande ex-líbris da Matinha: a casa-mãe, onde tudo acontece. “Um fórum de arte, natureza e criatividade”, diz Alfredo, dispensando detalhar aquilo que a memória vai registando: salas de estar com pequenos pátios que parecem multiplicar-se a cada esquina, os quadros da sua autoria, objectos de colecção e o restaurante regional Mesa, onde só têm espaço produtos sazonais e locais. Grande parte das frutas, legumes e bagas vêm da horta, do pomar e dos arbustos da herdade, numa modalidade que Alfredo apelida como “bush to table” e que acredita ser o futuro da gastronomia consciente.
Para explorar o território vizinho, a Matinha tem uma série de actividades à escolha, incluindo aulas de surf, mergulho e yoga, piqueniques, caminhadas na serra e passeios de cavalo à beira-mar. E, sim, o acesso à casa é impróprio para quem se enerva com estradas de terra batida, mas no caso não há muito que se possa fazer senão figas. São cerca de três quilómetros bastante aceitáveis e que respeitam a máxima de que a ruralidade padece de alguns imponderáveis, sendo a gravilha, o piso irregular e a poeirada os mais comuns. Nada que não faça sentido nesta geografia.
Porto Covo ainda é o que era
Fora da época balnear é difícil sentir o pulso a Porto Covo. O estado geral de hibernação chega a ser contagioso e não é raro que o mais bem-intencionado dos transeuntes, a certa altura, se sinta a incomodar. O último par de anos não foi generoso e obrigou ao fecho de vários negócios na vila, mas, no meio do caos, também trouxe uma boa nova: a chef Ana Moura, que passou pelo tri-estrela Michelin Arzak (País Basco) e ganhou culto em Lisboa pelo seu trabalho no Cave 23 e na Bacalhoaria Moderna, escolheu Porto Covo, terra do avô materno, para abrir o primeiro restaurante em nome próprio.
No Lamelas, que tem cozinha aberta e esplanada em cima da baía, jurou ser fiel aos sabores regionais e torceu o nariz à pergunta sobre onde entrariam as influências trazidas de Espanha. A ideia é aproximar, unir, escolher o produto local e devolver-lhe valor. A curiosidade pela matéria apresentou-a à abrótea, peixe dito pobre que fez renascer nas versões curado, em paté de fígado, com amêijoas e em molho verde. Relembrou-a do aconchego das migas de chouriço com entrecosto e da doçura das migas doces. E trouxe-a, em todo o seu rigor, de volta a uma cozinha que, nunca tendo sido sua, está consigo desde sempre. A garrafeira com mais de 200 referências locais tem curadoria do pai, António Moura, que uma vez por mês organiza eventos a três copos numa modalidade sem sugestão de pairing que convida a ir bebericando os vinhos à prova, a tomar notas para memória futura e a aproveitar a experiência de comer e beber os sabores locais.
Era uma vinha muito engraçada, não tinha adega, não tinha nada
O Monte da Carochinha, pela referência óbvia à fábula infantil, presta-se a meia dúzia de lugares-comuns, mas felizmente há do lado de lá uma dupla bem-disposta que sabe responder. A história da marca resume-se à obstinação de Manuela Macedo que, quando se dedicou a conhecer o monte que tinha comprado com o marido, César, meteu na cabeça que, naquele terreno acidentado a lembrar o Douro e com vista panorâmica para o mar, havia de se fazer um bom vinho branco. Da plantação da vinha ao engarrafamento, passaram seis anos e dali saiu um blend de arinto e encruzado, que foi filho único nos três anos seguintes. Depois de uma gama de cinco vinhos, a atenção virou-se para a floresta e daí vieram os pinhões, o azeite, o medronho e o mel, à venda em lojas locais.
A obra já está aprovada, mas enquanto não existir adega as provas de vinho acontecem apenas em restaurantes ou garrafeiras associadas, mediante reserva. No final do Verão, o Monte da Carochinha planeia apresentar o primeiro lote de arinto reserva, que esteve em estágio de um ano na mina do Lousal. Espera-se um aroma a frutos brancos apurado e uma salinidade amadurecida pela terra, de resto é uma incógnita, como, de resto, o início da história da Carochinha.
O regresso a Porto Covo para um último “até breve” faz-se pela serra em menos de 10 minutos, perfeitamente a tempo de um mergulho na Praia dos Buizinhos e de um último copo de vinho com os pés na areia. No Magic Cactus, na Praia da Vieirinha, há aquela que será uma das melhores esplanadas à beira-mar, elevada numa pequena falésia, e o cenário para registar e absorver só mais um bocadinho antes de ir embora. A única questão que se coloca é: Mesas com banco corrido ou espreguiçadeira? A vista de mar está garantida, há sombra para quem a preferir e bons copos e petiscos para acompanhar.
Da carta vale a pena passar pelo pica-pau de choco e dar um saltinho ao choco frito, que muitos elegem como o melhor de Porto Covo. Para refrescar, há uma selecção competente de vinhos regionais, com opção a copo, cocktails e as espirituosas do costume. Mas não, não é sítio de festa, é mais de calma e contemplação, o que explica que feche ao anoitecer.
Última paragem: Sines
Um dia de nevoeiro pode contaminar a apreciação que se faz de um sítio, tanto quanto um dia radiante acrescenta pontos extras a qualquer paisagem mediana. Sines sabe navegar as mudanças de luz com graça e não se priva de, no mesmo dia, se mostrar industrial e cinzentona, brilhante e estival, pitoresca na dose certa. O embrulho perfeito para o último dia de viagem e para satisfazer o bichinho das compras.
A primeira coisa a tratar é o vinho, e nesse caso o destino óbvio é A Talha, que se apresenta como “a garrafeira maior e mais completa da região do Alentejo”, e calha ter acontecido por acaso. Começou por ser uma loja gourmet, com chocolate de Santo André, conservas de Alcácer, azeite de Santiago, bolos de Porto Covo, cestaria tradicional, artesanato. E vinhos.
Hoje tem mais de 1500 referências, arrumadas por região, e um espaço museológico reservado à garrafeira privada do proprietário Nuno Silva e aos moscatéis de 40 anos. Da Península de Setúbal estão presentes todos os produtores com distribuição entre Tróia e a Zambujeira do Mar, e é com estes que Nuno tem relação mais próxima – sem desmérito para os restantes – e com quem anda a aprender a fazer vinho. Para um dia fazer o seu, “sabe-se lá”.
Antes de voltar à estrada, uma paragem na Mercearia Casas no centro histórico, a dois passos do mar, para conhecer Samantha e Rita Casas, mãe e filha, donas desta loja gourmet com cozinha comunitária onde acontecem tertúlias gastronómicas e culturais, como provas de vinhos, recitais de poesia e música ao vivo. A ideia é simples: privilegiar a arte e o produto de perto sem ser inflexível ao que vem de longe, desde que com selo nacional. Ao final do dia, a esplanada é bom pretexto para arrebitar a moleza da praia com um copo de branco da região.
Já à saída da cidade, valerá sempre a pena passar pelo Cais da Estação só para confirmar que o arroz de lingueirão que em 2013 foi eleito “o melhor do país” se mantém divinal. E que a garrafeira continua a privilegiar a produção local, com muitas e boas sugestões a copo, como que a servir de montra final a uma viagem marcada pelo vinho e pelo mar. Ou como ponto de partida.