Alcácer do Sal: Onde a terra e o Sado se juntam no prato
Por um lado, é terra fértil, de onde brotam riquezas como o arroz ou o pinhão. Por outro, é abençoada pelo rio e o mar não lhe está propriamente longe. Quando estes dois mundos se juntam no prato, multiplicam-se os pretextos para uma visita guiada pelo estômago. Eis algumas moradas para fazer bom proveito de Alcácer do Sal.
A poucos minutos de o sol se pôr, há um ponto na Avenida João Soares Branco a partir do qual os arcos da ponte reflectidos no rio fazem um efeito a que os salacienses chamam “a garrafa”. Depende da conjugação de uma série de factores e por isso não se consegue ver todos os dias. É como um presente para quem tem o privilégio de acordar todos os dias em Alcácer do Sal.
A cidade tem vindo a escrever a sua história sem que o passado se torne pegajoso ou avesso à mudança. Pelo contrário, tem sido de mãos dadas com a tradição que tem elevado a sua identidade, sempre próxima à terra e com o Sado como agregador da sua riqueza natural e patrimonial.
Na frente de rio concentra-se grande parte dos restaurantes, cafés e bares da cidade, e, apesar da linha corrida de esplanadas sempre cheias, há uma calma no ar que se sobrepõe a tudo o resto. Há quem diga que é do verde da paisagem, em plena Reserva Natural do Estuário do Sado; outros garantem que é do vinho, que, já se sabe, torna tudo mais leve. E se há coisa que em Alcácer do Sal merece toda a atenção – a par do pinhão e da produção de sal, os dois ex-líbris da economia local – é o vinho da região. Por aqui não faltam bons motivos para prová-los com tempo e na companhia de boa comida de tacho, feita a partir do que a terra e o rio têm para oferecer.
Para acompanhar a panorâmica da cidade lá do alto, junto ao castelo, para aproveitar a brisa à beira-rio e matar saudades de um doce conventual a sério ou para sentar os amigos e a família à mesa, não faltam em Alcácer do Sal pontos de paragem obrigatória para comer e beber bem.
Se apetecer uma coisinha doce
Maria Antonieta Carvalho Silva, da pastelaria Carapinha, lembra-se bem de ser miúda e esperar, inquieta, pelo autocarro que vinha do Torrão, carregado com doces regionais para distribuição. Os mais novos juntavam-se no “largo da caminetes” e esperavam pacientemente pelo momento em que lhes caíssem uns saquinhos de tosquiados nas mãos. Era só amêndoa ralada, mas sabia pela vida, conta. Em dias bons, lá calhava aparecer uma pinhoada da doceira Aldegundes Freitas e, aí sim, jackpot.
Agora, desde que em 1990 a família Carapinha se dedicou a perpetuar o receituário conventual da região, os doces passaram a ficar disponíveis em várias pastelarias, mercearias e restaurantes da cidade, mas nem por isso se perdeu a solenidade da primeira dentada, de quando se trinca uma coisa que já se sabe que vai ser óptima.
Muito ovo, mais açúcar, algum vinho, calda de laranja, requeijão, coco, amêndoa e pinhão em abundância e está feita a equipa vencedora. A partir destes ingredientes, renasceram o famoso pão de rala, uma das especialidades da pastelaria, os bêbedos, as queijadas, as tortas, as tartes, os tosquiados e os pudins. Para comer no local, em dose individual, ou para levar, em tamanho miniatura, o espaço soalheiro e colorido acabado de aterrar na cidade será sempre um pretexto para um pequeno-almoço ou lanche reforçado ou uma boa desculpa para um café acompanhado de um docinho a meio do dia.
Pastelaria Carapinha
Avenida dos Aviadores Gago Coutinho e Sacadura Cabral, 24, Alcácer do Sal
Tel.: 265669336
Uma mesa com um bocadinho de tudo
Este é um daqueles casos em que, como na história do ovo e da galinha, não se sabe bem o que veio primeiro: a boa fama da casa ou a mística da anfitriã? Maria Emília, conhecida como a Mila d’A Papinha, está há 29 anos ao leme do restaurante mais concorrido de Alcácer do Sal, desde que trocou a função pública pelo serviço à mesa. Só se apresenta a quem chega quando “sente”, cite-se a própria, “que é gente que sabe reconhecer o que aqui se faz” – o que, em verdade, está aos olhos de todos.
É logo na esplanada, em cima do rio e decorada com garrafas de vinho regional e por onde não é raro ver passar um lagostim apressado por baixo da mesa, que se percebe a ligação à terra e a relação de proximidade com o produto local. Lá dentro, o ambiente é modesto e faz sobressair a montra do dia, com a sapateira ao centro, as saladinhas de polvo e ovas, os queijos e enchidos da zona e o lingueirão, que às vezes aparece de surpresa na carta, na versão à Bulhão Pato.
A receita do sucesso é simples: petiscos tradicionais sempre frescos, com a matéria-prima da região a ser a estrela do cardápio. O marisco vem da Carrasqueira, o camarão é do Sado e o choco, invariavelmente, chega todos os dias de Setúbal para protagonizar um dos pratos mais emblemáticos da carta: o choco frito de coentrada, que, enquanto não chega, deixa espaço para o pratinho de torresmos e o queijo curado deixados na mesa para não deixar o vinho a sós.
A Papinha
Largo da Ribeira Velha, 3, Alcácer do Sal
Tel.: 265622781
Preço médio: 15 euros
À descoberta dos sabores do Sado
Quando elogiam a “renovação do pavimento” da sala de refeição, José Luís Crespo pouco mais faz do que encolher os ombros. Já se fartou de repetir que o azulejo hidráulico do chão é original e que, apesar do padrão moderno, tem mais de 80 anos. Está ali desde que o seu avô mandou construir o prédio onde hoje está um dos restaurantes de eleição de quem é da terra. A opinião é consensual: “Comer bem? É ali no Zé Luís.”
A luz branca da esplanada em frente ao rio deixa adivinhar que os almoços serão de certeza mais agradáveis em termos de paisagem, que em Alcácer tem o dom de se saber pintar com uma palete de tons quentes e aconchegantes, mas como ainda está por descobrir uma relação directa e absoluta entre os efeitos da luz e o prazer de uma boa refeição, é-se obrigado a aceitar que, seja a que horas for, a canja de garoupa que se serve n’A Descoberta é das mais competentes – senão mesmo a mais competente – que se encontra por estas bandas. Chega em panela de barro, fumegante e bem recheada, acompanhada de um dos vinhos da região, que Zé Luís faz questão de hastear como símbolo do seu amor pela cidade onde nasceu e se criou.
O receituário gravita pelos sabores alentejanos, pelo que não são de estranhar as migas e as carnes de alguidar, mas é no produto do rio e do mar que se encontram os imperdíveis arroz de lingueirão e enguias de várias formas, sempre acompanhadas de arroz (de Alcácer) de tomate.
A Descoberta
Avenida João Soares Branco, 15, Alcácer do Sal
Tel.: 265612244
Preço médio: 15 euros
Uma montra com o melhor da região
Maria Antonieta tem um certo dom da omnipresença, já que é a primeira cara que se reconhece à entrada da Alkazar Gourmet. A filha Lena, diz, é a dona do espaço, e apressa-se a sair de cena, não sem antes deixar a sugestão de “ir à Mila almoçar”. Podia ser um daqueles casos de cidade pequena, em que toda a gente se conhece pela alcunha, mas é mais do que isso, é um assunto de família. Mila e Antonieta são irmãs, e juntas formam uma das duplas mais respeitadas de Alcácer, não só pelo que trouxeram à cidade (Antonieta tem uma loja de antiguidades), mas pelo espírito embaixador.
Lena, ou Ana Helena, é, portanto, filha da terra e representa a segunda geração de salacianos que foram e voltaram para preencher alguns espaços vazios na cidade. “Foi preciso ver Alcácer com olhos de forasteiro para perceber o que faltava aqui. E faltava muita coisa, sobretudo a homenagem àquilo que é nosso”, conta. A Alkazar fez-se para ser montra do que de melhor se produz localmente, desde vinhos a compotas, passando pela doçaria, os queijos, o sal e o azeite – a um tempo, sala de chá, loja de antiguidades e mercearia gourmet.
Os móveis antigos vêm do antiquário da mãe e estão em constante mudança, tal como o recheio da loja. Para já, é poiso obrigatório para provar as pinhoadas de Aldegundes Freitas, servidas em folha de laranjeira, e parar na esplanada em frente ao rio para ir trincando lentamente (muito lentamente, que o pinhão não é chamado ouro branco sem razão) um copinho de gila com pinhão, na companhia de um moscatel refrescado no ponto.
Alkazar Gourmet
Rua António Machado dos Santos, 4, Alcácer do Sal
Tel.: 265088739
Copo com vista para o pôr-do-sol
Há quem ache a localização do Bar da Liga ligeiramente inconveniente, não só pela subida que exige, mas também pelo afastamento da zona ribeirinha. No que alguns entendem ver desvantagem, João Costa viu um quintal debruçado sobre os telhados da cidade, com vista desafogada para o rio e um pôr-do-sol desarmante, e nele uma excelente oportunidade de aumentar a vertente lúdico-gastronómica da cidade sem comprometer a história do espaço.
Não é exagero dizer que tudo o que se vê hoje aqui é resultado do empenho e trabalho manual de João, que construiu o mobiliário de exterior, incluindo os balcões e um murete adornado com fundos de garrafas, e soube aproveitar o pedaço de terra que restava para plantar uma horta de aromáticas que ainda hoje abastece a carta de chás e cocktails. Tratou o limoeiro, as nespereiras e as oliveiras que já lá estavam e construiu uma capoeira, onde vivem um galo (unanimemente odiado pelos vizinhos), uma dupla de faisões e uma caturra, que se tornou símbolo da casa.
Há dois anos alargou-se a oferta à comida e da cozinha passaram a sair não só sugestões para picar, como moelas, saladinhas do mar, camarões e tábuas mistas, mas pratos mais consistentes, como a língua estufada e as bochechas de porco preto, que honram o prefixo de bar-restaurante deste quintal. Na hora de pagar, chegam à mesa duas “chatices”: a conta, como seria de esperar, e um shot com o mesmo nome, oferta da casa.
Bar da Liga
Rua 31 de Janeiro, 21, Alcácer do Sal
Tel.: 968191528
Preço médio: 10 euros
Regressar à escola
O restaurante A Escola, a 15 minutos de carro do centro de Alcácer do Sal, faz valer aquela máxima que diz que um jogador bom não faz uma equipa. Se é certo que a carta é fruto da criatividade, estudo e trabalho do chef Octaviano Martins, seria injusto não atribuir parte do sucesso da experiência memorável à equipa de sala, uma dupla imbatível, justa e honesta como poucas, que não se recusa a franzir o sobrolho a uma tentativa infeliz na escolha do vinho.
O polvo estufado com batata-doce e o entrecosto frito com batatas salteadas pedem um tinto encorpado, e assim será, mas antes, enquanto o chef Martins se ocupa a ocupar-nos os sentidos com uma sucessão de aperitivos tradicionais – segue uma medalha de ouro para o inesperado künef que aparece à mesa e que relembra a herança árabe numa versão salgada de massa kadaif recheada com queijo de cabra –, aproveite-se para dar uma espreitadela aos brancos. Escolhem-se dois da Península de Setúbal, de entre uma lista extensíssima que se repete nos tintos, nos rosés, nos moscatéis. A carta de vinhos, por si só, merece ser objecto de estudo.
A Escola
EN 253 (Alcácer do Sal)
GPS: 38.3943, -8.6577
Tel.: 265612816
Preço médio: 25 euros
Este artigo foi publicado no n.º 2 da revista Solo.