Matthieu Ricard veio a Lisboa ensinar a cultivar a bondade
O monge budista, doutorado em genética molecular, fotógrafo, escritor e orador, tendo dado várias TED Talks, foi convidado pela Fundação Kangyur Rinpoche para uma conferência sobre o que une a humanidade em tempos de incerteza.
Não é a primeira vez que Matthieu Ricard vem a Portugal. Já o fizera antes com o seu mestre Kangyur Rinpoche – figura que dá nome à fundação que organizou a conferência desta quinta-feira –, e acompanhou também o Dalai Lama, de quem foi intérprete, aquando da sua visita ao país. Mas desta vez, o auditório da Faculdade de Medicina Dentária da Universidade de Lisboa, cheio de plantas, com um cenário de natureza como pano de fundo e música oriental a convidar à calma, enche-se para ouvir o monge budista tibetano, de origem francesa, que vive no Nepal há 50 anos.
Matthieu Ricard entra na sala com um leve sorriso, que mantém ao longo da hora e meia seguinte em que reflecte sobre “A Humanidade Que Nos Une Em Tempos De Incerteza”. O monge de 76 anos fala de responsabilidade social nesta que é uma altura marcada por uma grave crise climática e deixa uma mensagem de esperança, quer na mudança que é necessária introduzir, quer no próprio ser humano e na sua “bondade interior”.
A cada frase dita, o monge intercala uma referência a um estudo científico ou lembra um especialista seu amigo, o que não admira já que Matthieu Ricard é doutorado em genética molecular e nunca deixou de estar ligado à ciência, mesmo depois de ter optado pelo caminho espiritual que o levou aos Himalaias, aos 26 anos. Actualmente colabora com o instituto norte-americano Mind and Life, que alia a ciência e a sabedoria contemplativa para conhecer melhor a mente e criar mudanças positivas no mundo, diz o seu site.
Em tempos incertos, com uma guerra na Europa, uma pandemia que ainda não acabou e o aquecimento global a ameaçar o planeta, há pelo menos uma certeza para o autor: num mundo onde tudo é “interdependente” e nada é “permanente”, somos uma “humanidade comum” que nasce com o sentimento de “bondade” dentro de si. E as situações de emergência humanitária são exemplo disso, aponta, acrescentando como exemplo um estudo dinamarquês, onde foram entrevistadas 1600 pessoas de 60 países, após o primeiro confinamento devido à pandemia, e no qual foi mostrado que a sociedade passara a usar mais o pronome “nós” em vez do autocentrado “eu”.
Este altruísmo e compaixão precisam de ser cultivados activamente para não corrermos o risco de vulgarizarmos o sofrimento – o do outro, mas também o próprio, que muitas vezes é acerbado por meio de “obsessões, confusões ou sentimentos como a raiva”, que podem vir a alimentar o “ódio contra nós mesmos”, alerta.
A própria incerteza, refere Ricard, faz parte da natureza humana: “A única certeza que temos é que não nos é possível escapar à morte.” O facto de não sabermos quando é que a morte chega dever-nos-ia mostrar o quão “preciosa é a vida” e incentivar-nos a “viver cada momento da melhor forma”. Pode ser “simplesmente estar no momento presente, sentado, em paz”.
“Todos no mesmo barco”
Tudo o que nos rodeia, assim como o próprio ser humano, está assente numa interdependência, sublinha o monge, como se de uma “grande teia de aranha” se tratasse. Matthieu Ricard, por várias vezes, utilizou metáforas e recorreu a histórias para ilustrar o seu discurso, sempre com sentido de humor. “Estamos todos no mesmo barco”, ressalva, não havendo fronteiras geográficas capazes de travar uma pandemia ou uma crise climática. Esta última preocupa-o e considera que se trata do maior desafio da actualidade, mas que é preciso coragem para mudar. “Há uma solução para a crise climática, mas implica mudanças drásticas...”, diz, deixando uma pergunta no ar: “Por que não haveríamos de ter coragem para fazer [essas mudanças]? É um mistério, porque deveríamos ter.”
A mudança não se alcança com o “acordar de manhã a pensar que se vai mudar o mundo”, nota, mas sim com uma atitude que envolva pensar nos outros, “não excluindo ninguém do nosso coração”. Para termos uma sociedade mais benevolente, primeiro há que mudar a “nível individual, através de um treino da mente – a que alguns chamam “meditação” –; depois é necessária uma mudança cultural; e, por fim, também as instituições terão de ser mudadas”, enumera.
Matthieu Ricard fala de uma “bondade eficiente”, ou seja, reflectir sobre “onde podemos praticar o bem a partir do tempo e dos recursos de que dispomos”. E dá um exemplo concreto, o do Centro de Apoio ao Sem-Abrigo (CASA), que conta com a ajuda da Fundação Kangyur Rinpoche e instituição de solidariedade para a qual reverteu o valor da bilheteira deste encontro. E apela: “O relógio está a bater: Não podemos fazer tudo, mas podemos fazer alguma coisa.” A sala enche-se de sorrisos e de palmas.