Os colegas dos homens que mataram o meu pai
Qualquer bom filho de Angola sabe o que é o SIC. A única coisa que me ocorreu foi perguntar-me, posta naquele papel, quem seriam os criminosos que viriam acompanhar?
Eles vieram. E à maneira deles apresentaram-se. Quando lhes perguntei diretamente em que hospital trabalhavam, hesitaram por segundos até que disseram claramente: “No SIC”.
Desci ao mais fundo dos piores sentimentos que pode cultivar um ser humano para perceber que não era ali, que ali não havia nada. E depois subi, mais devagar para não me magoar. “Ah! Então vocês são a malta da pesada? São os verdadeiros. Do Serviço de Investigação Criminal?”. Eles acenaram que sim com aquele sorriso de fim do lábio. Um homem e uma mulher em frente a mim e nenhum se parecia com o tal Inferno que nos leve. A vida é assim e as pessoas são, por menos que esperemos delas, tão só pessoas.
Na quinta-feira 7 de abril, coincidentemente um dia depois do meu aniversário, recebi um email da Plataforma 27 de Maio a indicar que a associação reclamou junto do Governo de Angola que o processo de exumação e identificação dos restos mortais das vítimas do 27 de Maio fosse o mais abrangente possível pelo que, resultado da advocacia, se deslocariam a Portugal 2 médicos angolanos. Quem estivesse em Portugal e interessado em ser parte do processo que indicasse nome e contato. Fi-lo de imediato. No dia 8 de abril, coincidentemente um dia antes da data em que se comemoraria o 67.º aniversário do meu pai, recebi um email do identificado como médico forense a confirmar que na segunda-feira, 11 de abril, a partir das 14h30, estaria a equipa médica a aguardar pelos familiares das vítimas para proceder à técnica de coleta dos elementos para análise de DNA nas instalações da Delegação Sul, em Lisboa, do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses (INMLCF) de Portugal.
Cheguei bem antes das 14h, fui dali até ao Gothë e voltei umas quantas vezes até que às 14h decidi-me por entrar. Identifiquei-me na receção e ouvi o previsível, “que é só às 14h30”. Só às 14h30 acabaria por ser tão residual como se tivesse chegado às 09h30. Ando desde os 16 meses a querer dizer a alguém, que não sei bem quem, “este senhor, esteja ele onde estiver, é o meu pai. Respeitem-nos! Respeitem-no! Respeitem-me!”
Não sei se passou muito tempo, se passou pouco tempo, sequer percebi quanto tempo passou e o que se passou durante esse tempo até que uma senhora de bata branca se aproximou de mim e pediu que subisse. “Não estávamos à espera de si tão cedo, desculpe tê-la feito esperar”. Acenei com a cabeça, que não tinha importância e fui direito ao que me preocupava “Sabe, eu tenho uma anemia de células falciformes e tenho péssimas veias, a minha preocupação é só essa”. A senhora explicou-me que iam colher só umas gotas, com um aparelho. “Como os diabéticos?”, avancei. Ela disse que sim e explicou que iam colher também saliva das bucais. Estava tudo bem. Pediu-me que aguardasse na antessala, onde estava uma colega, e logo ali se juntaram mais um homem e uma mulher que depreendi serem os “médicos angolanos”. Cumprimentámo-nos de forma gentil e sem rodeios perguntei-lhes em que local de Luanda é que estavam e então que percebi que eram do SIC.
Qualquer bom filho de Angola sabe o que é o SIC, mas perante a informação não senti nada que fosse medo, apreensão ou desconfiança. A única coisa que me ocorreu foi perguntar-me, posta naquele papel, quem seriam os criminosos que viriam acompanhar? Viriam acompanhar-nos a nós, os filhos? Vigiar ainda os passos perdidos deles, nossos assassinados pais? Naqueles segundos perdi-me num universo de perguntas cartesianas e ele foi ativando o pisca-pisca para que eu não me perdesse, “deve gostar de cinema, por uma ou duas coisas que disse percebo que deve adorar fazer filmes, gostava de ter uma produtora”. Vinha o jogo do “eu sei que você sabe que eu sei que você sabe o que eu sei que você sabe que eu sei” e Deus ditou que entrasse na sala para que não se prolongasse mais.
Feito o exame, pergunto à técnica. “A minha tia doou sangue para o mesmo processo em Luanda. Em maio do ano passado foi à Comissão para a Implementação do Plano de Reconciliação em Memórias das Vítimas dos Conflitos Políticos (CIVICOP) reclamar os restos mortais do meu pai, seu irmão, e em sequência disso foi chamada para recolha de imagem, impressões digitais e sangue num laboratório. É possível vocês solicitarem a Luanda que vos envie os resultados laboratoriais para reforçar estes dados biológicos que de mim coletam?” Ela disse-me que sim, indicou-me o email dela e o email do diretor para fazer a requisição e saí. Lá fora estava o que a esta altura se perfazia como “técnico criminologista” que sorriu e sentou-se à minha frente. Era preciso preencher um papel. No corredor outrora vazio já se formava uma pequena reunião familiar e íamo-nos cumprimentando adivinhando os nomes uns dos outros.
Antes ainda do meu interlocutor me entregar o tal papel de ocasião já eu lhe perguntava: “Então identificaram 10 corpos, é isso?” Ele acenou entre o sim e o não. Continuei: “São 50 mil. Preveem ter a operação terminada quando? Final do ano?” Respondeu-me a única coisa que não poderia estar à espera: “Nós sabemos onde estão os corpos. Os nossos ex-colegas estão a indicar-nos. Alguns ainda trabalham connosco. Eles sabem onde foram colocados os corpos.”
Caiu-me a ficha. Aquilo, dito assim, no corredor de, enfim, para todos os efeitos um local onde se prestam atos médicos. E ele continuou. “Nós podemos fazer isto sozinhos. Não precisamos dos portugueses para nada”. Nesta altura pede à colega que lhe traga a pasta. Eis que entra em cena uma mala de proteção preta tipo Kraiser+Kraft e eu a tentar perceber para onde seriam jogados os dados. Na mala aberta acumulam-se centenas de material de coleta, zaragatoas, seringas espalhadas e a encherem a mala ao ponto de quase se estenderem pelo chão. “Está a ver. O que eles têm nós também temos. Podemos muito bem ser nós a fazer os testes. Se quiser diz-nos e nós vamos e buscamos o processo.” Eu ainda pergunto, no meio do cenário sem linhas vermelhas, “mas e conseguem recuperar o processo da minha tia e juntar ao meu?” Um sorriso triunfalista. “Conseguimos.”
A vida sempre a insistir em colocar-me no perímetro, a colocar à prova coisas que tenho dadas como certas, como o resquício da humanidade a soar em todo e qualquer ser humano, como o bem acima do mal, como o perdão acima de todos os nossos pecados… E depois eu ali, sem saber por onde me mover, atada entre aquilo que somos e aquilo que eu me recuso a ver, entre esta mochila das pedras em que já nem eu consigo perceber a utilidade de continuar a carregar. Porquê? Para onde? Com que sentido? Vale a pena continuar? Para ver mais quê?
Respondi-lhe. “Vou falar com alguém mais experiente do que eu e depois digo-lhe algo. Só quero que se comprometa em ceder os dados do processo da minha tia.” Acenou que sim e nas primeiras forças que tive para me levantar tocou o telemóvel. Era o Che. Finalmente, o meu irmão.
– “Che…”
– “Ulika…”
– “É tão bom ouvir a tua voz.”
– “E eu a tua.”
Fui até ao fundo do corredor. Sentei-me. Falámos. Ele terminou, que a tia Mimosa era da mesma opinião. E eu não hesitei. Voltei para falar com o colega dos homens que mataram o meu pai. “Já resolvi. Eu vou acompanhar os meus irmãos. O processo fica aqui e seguirá os mesmos trâmites que o deles”.
Não sabendo eu nem o caminho, nem o motivo, nem para onde esta mochila nos leva, lembrei-me que pode haver um fim na tempestade. Como Gerry & The Pacemakers. Saí dali. “Walk on, walk on/ With hope in your heart/ And you'll never walk alone/ You'll never walk alone.”