Um rapaz sem perna a tocar violino. Como encontrar a felicidade no meio da destruição?

Os russos também estão a sofrer. Milhares já foram presos em manifestações contra a guerra. Contra Putin. Nem todos são Putin. Uma perna não define um homem. Um homem não define um povo.

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AMR ABDALLAH DALSH/Reuters

Pratico ioga. Ocasionalmente. Por vezes, executo uma sequência completa. Outras, apenas duas ou três poses. Ou mesmo só uma, aguentando-a o maior tempo possível. Faço-o quase sempre sem aquecimento, minutos depois de acordar. Ou seja, dificilmente mereço a qualificação de praticante de ioga. E tenho perfeita consciência de estar a colocar-me à mercê dos reparos de quem realmente percebe do assunto.

Em minha defesa, tenho a dizer que que já pratiquei ioga sob a orientação de professores qualificados e que é graças a isso que conheço a pose Natarajasana (“Pose de Shiva” ou “Pose do Senhor da Dança”), da qual gosto particularmente. Natarajasana. A designação é inspirada no nome do deus hindu Shiva Nataraja, Rei da Dança, aquele que encontra a felicidade no meio da destruição. Muito a propósito do momento que vivemos.

A Natarajasana requer paciência, concentração e persistência para ser concretizada na perfeição. Faço-a assim-assim, buscando com afinco, paciência e concentração a paz de espírito e clareza prometidos a quem realiza esta asana com frequência, especialmente indicada para pessoas que estão sempre a pensar. Tudo na Natarajasana é uma questão de equilíbrio: consiste em ficar apoiado numa só perna enquanto seguramos a outra perna pelo tornozelo, elevando-a para cima e para trás, tentando que a coxa fique paralela ao chão, e inclinamos o tronco para a frente, esticando o braço solto para a frente. Explicado assim parece contorcionismo, mas é mais simples (ou não) do que a explicação sugere. Em alguns dias, tenho muita dificuldade em segurar-me na pose; noutros, mantenho-me firme, ultrapassando em muito as cinco a dez respirações recomendadas. Ou seja, nuns dias estou mais equilibrado, noutros menos, nada diferente do que acontece com a forma como vamos gerindo o dia-a-dia. É assim, não é?

Hoje de manhã, a minha perna direita estava firme como um pilar de betão, pelo que lá para a vigésima respiração, o meu pensamento viajou até ao ano de 2013, quando visitei a Rússia. Uma visita que começou atribulada: minutos depois de ter pisado solo russo fui detido, juntamente com um camarada jornalista, pelos serviços policiais do Aeroporto de Moscovo. A razão é muito pouco excitante e teve a ver com a data (que estava errada) de entrada em território russo. Fomos libertados à meia-noite, cinco horas depois da detenção, depois de jurarmos que não éramos homossexuais em lua-de-mel e de assinarmos um documento em cirílico — a comunicação com as autoridades russas durante o processo de detenção, de ida (acompanhada) à casa de banho, de interrogatório, de verificação da documentação e de libertação teve uma interlocutora cujos recursos em inglês pouco iam para lá de yes, no e OK — em que nos comprometíamos a pagar uma multa pelo transtorno causado aos serviços de fiscalização do aeroporto.

No dia seguinte, visitámos a lindíssima Praça Vermelha. Não contive as lágrimas. Nada teve a ver com simpatias partidárias, simplesmente emociono-me facilmente com cenários belos e majestosos, sejam naturais ou fabricados pelo Homem. Já me aconteceu o mesmo, por exemplo, na Biblioteca do Palácio Nacional de Mafra, na Serra da Estrela ou na planície alentejana.

A viagem na Rússia prosseguiu na Sibéria, onde visitei a cidade de Birobidjan, a capital do Oblast Autónomo Judaico, um dos dois únicos Estados Judaicos no mundo (o outro é Israel), criado por Estaline como alternativa ao projecto sionista. “Uma das piores boas ideias de sempre”, assim o descreveu a jornalista russo-americana Masha Gessen, assumida opositora de Vladimir Putin e de Donald Trump, no livro Where The Jews Aren't (não está traduzido em português). Actualmente, os judeus representam menos de 1% da população de Birobidjan (cerca 75 mil pessoas).

Ansioso por conhecer a cidade — que fica a 8000 km de Moscovo e a 12.600 de Lisboa —, às cinco da manhã já estava na rua (o jet lag também ajudou; são dez horas a mais do que em Portugal). Após caminhar uns cinco minutos, encontrei o teatro da cidade, defronte do qual, numa praça ajardinada, se encontra uma bonita escultura de um violinista judaico. Observei-a durante algum tempo e fotografei-a de vários ângulos, enquanto trauteava, confiante de que ninguém estaria por perto àquela hora, As Quatro Estações de Vivaldi. Retomei a caminhada sem destino, descobrindo símbolos hebraicos por toda a parte, entre os quais uma enorme menorá (um candelabro de sete braços, um dos principais e mais difundidos símbolos do judaísmo) em frente à estação ferroviária atravessada pela rota transiberiana.

Já passava das sete da manhã e a cidade, entretanto, acordara. As pessoas chegavam e partiam de comboio, entravam e saíam de autocarros a cair de ferrugem. Junto à entrada da estação, um rapaz tocava violino. O som, abafado pelo ruído do trânsito, mal se ouvia. Por vezes, parecia até que o arco não tocava nas cordas. Mas o rapaz, indiferente ao ruído, apoiado na única perna que tinha, sem muleta ou bengala, não parava de tocar. Ao seu lado, no chão, estava o ursinho Misha, a mascote das Olimpíadas de Moscovo (1980), que segurava um chapéu voltado para cima onde se viam meia dúzia de moedas escuras. Aproximei-me e deitei uma moeda de um euro para o chapéu. O rapaz sorriu-me.

— Misha — disse-lhe, apontando para o urso.

Sem parar de tocar, respondeu-me em russo. Acenei negativamente com a cabeça para explicar que não tinha percebido patavina e falei-lhe em inglês. Ele parou de tocar e bateu no peito enquanto dizia Misha; depois, apontou para a mascote e voltou a dizer Misha; e voltou a bater no peito, dizendo Misha outra vez. Conclui que o seu nome era Misha (diminutivo de Mikhail). Daí fazer-se acompanhar do urso. Disse-lhe o meu nome e olhei para a perna que faltava, fazendo um gesto de interrogação. Ele simulou com a boca um som de explosão e sorriu. Eu não correspondi. Senti-me intrometido e estúpido. Ele continuou a sorrir e recomeçou a tocar enquanto dançava ao pé-coxinho e cantava. Sempre a sorrir. “Mas onde tinha eu a cabeça para lhe perguntar pela perna?”, interroguei-me durante alguns segundos. “O que interessa isso? Estás parvo ou quê?!”, repreendi-me. “O tipo está feliz! Uma perna omissa não define um homem!” Acenei-lhe e continuei a caminhada.

Ponho o outro pé no chão e olho para o relógio. Pouco passam das sete da manhã, como naquele dia em que conheci o Misha em Birobidjan. “Resiliência”, ocorre-me. A palavra da moda. “Superação”. Outra. Todos os dias, palavras deste género são repetidas sem parar nas redes sociais, televisões, rádios, eventos corporativos e associações desportivas. “Motivação”. Mais uma. “Disciplina». Mantenho os dois pés no chão, a Natarajasana pode esperar. Hoje não me sinto muito resiliente, nem com vontade de me superar em equilíbrio precário numa perna. A motivação é pouca, a disciplina nenhuma. O Misha não me sai da cabeça. “Empatia”. “Compaixão”. Estas ouvem-se e praticam-se menos. Os russos também estão a sofrer. Milhares já foram presos em manifestações contra a guerra. Contra Putin. Nem todos são Putin. Uma perna não define um homem. Um homem não define um povo.

Já chega de ioga por hoje. Amanhã faço a outra perna. Acendo a televisão. Vozes da Ucrânia: “Vou disparar, disparar, disparar. E proteger a minha casa”, assevera um popular armado; “superaremos tudo”, afirma uma refugiada de meia-idade; “é impossível explicar isto a pessoas que não vivem neste desespero. Mas este desespero não é de ‘Oh, estamos cercados’. Não! É o desespero de ‘vamos vencer! Vamos combater-vos até ao inferno, que é o vosso lugar’”, avisa outro popular armado.

A imagem de Misha regressa à minha cabeça. Está junto à porta da estação de Birobidjan numa Natarajasana permanente, sem muleta ou bengala, a cantar e a dançar, sorrindo, enquanto toca o violino que mal se ouve. Paz de espírito e clareza. Encontrar a felicidade no meio da destruição. Como?

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